"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 20 de junho de 2017

A Revolta dos Intelectuais

Tortura usada contra bruxas acusadas, 1577.
Johann Jakob Wick

Exaltaríamos o Renascimento na Itália além dos limites se não observássemos que ali, como em outros lugares, a civilização era da minoria, pela minoria e para a minoria.

O homem simples e comum lavrava a terra, puxava carroças ou carregava fardos, labutava do amanhcer ao pôr-do-sol, e à noite não tinha mais forças para pensar; deixava os outros pensarem por ele, assim como os outros o faziam trabalhar. Recebia suas opiniões, religião e respostas aos enigmas da vida do próprio ambiente em que vivia ou herdava-as juntamente com a morada dos ancestrais. Aceitava não somente as fascinantes, confortadoras, inspiradoras e terríveis maravilhas da teologia tradicional, que diariamente lhe eram inculcadas no espírito pelo contágio ou pelas artes, mas acrescentava-lhes demonologia, feitiçaria, presságios, magia, adivinhação e astrologia, compondo a metafísica popular que a Igreja condenava como sendo mais perturbadora do que a heresia. Maquiavel, embora cético em religião, sugeriu a possibilidade de que "o ar esteja povoado de espíritos" e declarou-se convicto de que os grandes acontecimentos são anunciados por sortilégios, profecias, revelações e "sinais no céu".

Entre o povo era particularmente difundida a noção de que Satã e um certo número de demônios menores pairavam no ar e podiam usar poderes sobrenaturais para ajudar os seus fiéis devotos. Uma certa classe de mulheres declarava ter acesso a esses demônios, e através deles a conhecimentos e poderes sobrenaturais. Em 1484, uma bula do Papa Inocêncio VIII proibiu que se recorresse a tais feiticeiras e solicitou à Inquisição que ficasse alerta a essas práticas. O papa não especificou qualquer punição em particular, mas a Inquisição, seguindo o mandamento do Antigo Testamento - "não permitirás que uma feiticeira viva" - fez da feitiçaria um crime capital; e em 1485, só em Como quarenta e uma mulheres foram queimadas por feitiçaria. Essas execuções se multiplicaram: cento e quarenta em Brescia, em 1486; e outras trezentas em Como em 1514, no pontificado do refinado e gentil Leão X.

Queima de três bruxas em Baden, Suíca, 1585. 
Johann Jakob Wick

Nesse ambiente, a ciência marcou passo; na verdade, ficou abaixo do nível que alcançara com Alberto Magno no século XIII. Não pôde desfrutar, como a arte, do apoio unido do laicato e da Igreja. A única ciência próspera foi a medicina, pois pela saúde os homens sacrificariam qualquer coisa menos o apetite. Os médicos foram condenados pelos elevados honorários, e invejados pela sua alta posição social e pelas espalhafatosas roupas escarlates. Destruíram a hostilidade medieval para com a dissecação de cadáveres; às vezes, eclesiásticos os ajudavam. Em 1319, estudantes de medicina em Bolonha roubaram um cadáver no cemitério e levaram-no a um professor da universidade, que o dissecou para instruí-los; foram processados, porém declarados inocentes; e daí em diante as autoridades civis fizeram vista grossa ao uso "em anatomia" de criminosos executados e não reivindicados. Logo a dissecação era praticada em todas as escolas médicas da Itália, inclusive nas escolas papais de Roma. Ainda assim, por volta de 1500, a anatomia só alcançara o conhecimento que Hipócrates e Galeno possuíam na Antiguidade grega e romana.

A cirurgia ficou famosa rapidamente quando o seu repertório de operações e instrumentos aproximou-se da variedade e da competência das antigas práticas egípcias. Por volta de 1500, muitos médicos europeus assimilaram o ideal hipocrático de aliar filosofia à medicina; com facilidade passavam de um assunto a outro, no estudo e no ensino; e alguns, por serem também cavalheiros, constituíram a nata da época.

DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 307-9.

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