"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

As consequências da grande guerra 2: os efeitos sobre os espíritos

Soldados mortos, László Mednyánszky

A guerra, seus problemas e suas conseqüências também produziram efeitos sobre o espírito público, conseqüências de ordem intelectual, moral, psicológica e ideológica. Talvez sejam até as mais profundas e duradouras; algumas ainda se fazem sentir na véspera do segundo conflito mundial. [...]

A guerra abalou o respeito aos valores tradicionais. A Europa liberal, a Europa democrática, repousava num pequeno número de postulados fundamentais, admitidos universalmente, que foram, de repente, reexaminados. O espetáculo da matança prolongada e generalizada projeta uma sombra sobre o otimismo do século XIX, sobre a confiança das gerações precedentes na próxima instauração de uma sociedade melhor, mais livre e mais justa.

Em segundo lugar, os sacrifícios suportados, a tensão imposta e o esforço de guerra provocam uma reação de compensação, o desejo de recuperar os anos perdidos, de tomar uma desforra contra tantos sofrimentos. É o apetite de gozo que os escritores concordam em descrever como característico da década de 1920. Não nos deixemos, contudo, iludir por testemunhos parciais e não generalizemos indevidamente. Tendemos amiúde a extrapolar a partir de situações muito localizadas: o mesmo erro nos apresenta toda a França do Diretório entregue aos prazeres das “merveilleuses” e dos “muscadins”, ou a Europa depois de 1945 adotando o existencialismo de Saint-Germain-des-Prés. A descrição não se aplica às aldeias nem aos burgos. Em compensação, o apetite de gozo, a busca do prazer e do luxo, que se estadeiam nas capitais, contribuíram para a desmoralização do país.

A provação da guerra desenvolve efeitos de sentidos contrários. É o que se constata em dois exemplos: a religião e o patriotismo.

No tocante à religião, a provação despertou com freqüência o sentimento religioso ou a inquietação metafísica sobre o sentido do destino humano; a guerra provocou inúmeros retornos à prática, foi causa de uma onda de conversões. Ao mesmo tempo, porém, pelo escândalo que representa, pelo desmedido permanente da fraternidade do Evangelho e por se haverem deixado as Igrejas, em todos os países, envolver no esforço da guerra, esta divorciou da fé um sem-número de espíritos.

No tocante à ideia nacional, idêntica dualidade de conseqüências psicológicas e ideológicas. De um lado, a guerra e seus malefícios estimularam o pacifismo: parte da opinião pública consagra-lhe um horror instintivo, insuperável; a literatura do após-guerra é pacifista, numa reação contra a publicidade mentirosa e a propaganda bélica, e descreve os horrores, as atrocidades ou a monotonia das trincheiras. A guerra estimulou o internacionalismo: para impedir-lhe o retorno, todos estão prontos para todas as experiências, para todas as soluções. O exemplo dado pelos bolchevistas e o derrotismo revolucionário comunicam ao antimilitarismo, ao pacifismo e ao internacionalismo tradicional uma intensidade sem precedentes. A aspiração à paz, talvez a aspiração fundamental da Europa do após-guerra, explica as negociações para o desarmamento, a confiança nas instituições internacionais, a simpatia pela Sociedade das Nações, o Pacto Briand-Kellog, que, em 1928, colocará a guerra fora da lei, e o que o nome de Briand simbolizará para a opinião pública francesa.

Por outro lado, todavia, as lembranças de guerra, a decepção gerada pela derrota ou, entre os vencedores, por resultados considerados inferiores aos sacrifícios aceitos, exasperam o amor próprio e o orgulho nacional. É um dos componentes do espírito do “ex-combatente”: dele procederão os regimes totalitários. Uma das razões de queixa articuladas contra a democracia pelo fascismo na Itália, pelo nacionalismo na Alemanha e pelos regimes congêneres é que ela sacrificou a honra e o interesse nacionais, permitiu que se dilapidassem as conquistas do esforço de guerra ou até, no caso da Alemanha, apunhalou o exército pelas costas.

Em toda a parte, a guerra engendra reações contraditórias: aspiração à ultrapassagem dos particularismos nacionais e exasperação desses mesmos particularismos. Em 1920, nos Estados Unidos, o redespertar do isolacionismo leva os republicanos à Casa Branca. O Congresso põe em vigor uma legislação neutralista e adota leis que restringem a imigração.

RÉMOND, René. O Século XX. De 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 42-43. (Introdução à história de nosso tempo 3).

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