"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Peregrinação a Kiev e bailes de máscaras em Moscou (Parte 3)

Catarina II da Rússia, Dmitry Grigoryevich Levitsky

Naquele outono, porém, Catarina viu e sentiu o lado negro da personalidade de Elizabeth. A vaidade da imperatriz exigia que ela fosse não somente a mais poderosa mulher do império, mas também a mais bela. Não tolerava ouvir elogios à beleza de outra mulher. Os triunfos de Catarina não lhe passaram despercebidos, e sua irritação encontrou um escape. Numa noite, na Ópera, a imperatriz estava com Lestocq no camarote real, oposto ao camarote de Catarina, Joana e Pedro. No intervalo, a imperatriz notou Catarina conversando alegremente com Pedro. Como poderia essa jovem, a radiante saúde e confiança em pessoa, agora tão popular na corte, ser a mesma menina tímida que chegara à Rússia um ano antes? De repente, o ciúme da imperatriz flamejou. Olhando para a mulher mais jovem, ela pegou o primeiro agravo que lhe veio à mente. Como se o assunto não pudesse esperar, despachou Lestocq para o camarote de Catarina para lhe dizer que a imperatriz estava furiosa com ela porque tinha contraído débitos inaceitáveis. Elizabeth lhe dera 30 mil rublos para onde tinham ido? Ao dar o recado, Lestocq fez questão de que Pedro e todos à volta pudessem ouvir. As lágrimas jorraram dos olhos de Catarina e, mesmo chorando, recebeu nova humilhação. Pedro, em vez de consolá-la, disse que concordava com a tia e achava apropriado que a noiva fosse repreendida, Joana então declarou que, como Catarina não mais a consultava sobre como sua filha deveria se comportar, "lavava as mãos" daquela história.

A queda foi súbita, abrupta. O que tinha acontecido? Que crime tinha cometido a menina de 15 anos, que só pensava em agradar a todo mundo, especialmente à imperatriz? Catarina foi verificar e viu que tinha um débito de 2 mil rublos. A quantia era irrisória em vista da extravagância e generosidade da própria Elizabeth, e a reprimenda era obviamente uma desculpa para encobrir outra queixa. É verdade que Catarina gastava sem restrições. Tinha mandado dinheiro para o pai pagar as despesas de seu irmão. Tinha gastado consigo mesma. Ao chegar à Rússia com apenas quatro vestidos e uma dúzia de roupas de baixo em seu baú, e assumindo seu lugar numa corte em que as mulheres trocavam de roupa três vezes por dia, ela usou parte de sua mesada para montar um guarda-roupa. Mas a maior parte havia sido gasta em numerosos presentes para sua mãe, suas damas de companhia e para o próprio Pedro. Ela descobrira que o meio mais eficaz de pacificar o temperamento da mãe e parar com as constantes implicâncias entre Joana e Pedro era dar presentes para ambos. Percebeu que, naquela corte, presentes conquistavam amizades. Percebeu também que a maioria das pessoas a sua volta não fazia objeção a receber presentes. Portanto, ansiosa por conquistar boa vontade, não viu motivo para desprezar esse método simples e poderoso. Em poucos meses, tinha aprendido não só a língua, mas também os costumes da Rússia.

Era difícil entender e aceitar esse repentino ataque da imperatriz. Revelava as duas faces de Elizabeth, uma mulher que, alternadamente e sem aviso, encantava e intimidava. Depois, quando Catarina se lembrava da lição aprendida ao lidar com um ego inflado como o de Elizabeth, todas as mulheres da corte deviam evitar ter muito sucesso. Ela se esforçou para se reintegrar com sua protetora. E Elizabeth, quando o ataque de ciúmes cedeu, se abrandou e acabou por esquecer o incidente.

MASSIE, Robert K. Catarina, a grande: retrato de uma mulher. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. p. 87-88.

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