"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Francisco de Bourbon: noivo com rendas (Parte 1)

Parte 1: Matrimônio por impotência

Por amor de Deus, Francisco, usas mais rendas que eu!
(Isabel II, na sua noite de núpcias)

 Retrato de Francisco de Assis Bourbon, Federico de Madrazo y Kuntz

Francisco de Assis de Bourbon era o secundogénito desta nobre casa, que teve a sorte de se casar com uma rainha e o azar de esta ser sua prima Isabel II de Espanha. Muito mulher, em todos os sentidos, para que um marido homossexual e bastante efeminado pudesse levar com alguma dignidade um matrimônio de aparência por razões de Estado. O pobre Francisco, Paquito como todos lhes chamavam, tentou honestamente no início, mas sem conseguir dissimular de todo os seus adornos. Mas Isabel também não perdeu tempo. Pouco depois do casamento, lançou-se numa vida imprópria de qualquer senhora e muito menos de uma rainha. Os seus coquetismos públicos, a sua enorme colecção de amantes, as suas piadas cortantes sobre o seu efeminado marido, que o faziam corar de vergonha e o indignavam ao mesmo tempo, deterioravam tanto a sua imagem pública como a paciência do forçado cônjuge. O confronto levou a uma ruptura, nem se dando ao trabalho de manterem as aparências, e Francisco começou a tramar uma elaborada vingança.

Quando, em 1822, Francisco de Assis de Bourbon nasceu no palácio de Aranjuez, foi para fazer parte de uma família complicada.

O pai, o infante Francisco de Paula, tinha sido oficialmente o herdeiro da coroa, embora nunca tivesse chegado a reinar. A revolta de Aranjuez de 1808, que motivou a abdicação de Carlos IV, destituiu o seu primogénito a favor do irmão mais novo, que subiu ao trono como Fernando VII. A razão evocada pelos amotinados e referendada pelas Cortes de Cádis foi a de Francisco de Paula não ser, na verdade, filho de Carlos IV, mas do odiado favorito Godoy e da rainha Maria Luísa. O presumido bastardo ficou na incómoda posição de infante despeitado e ressentido, com o título de consolação de duque de Cádis. Francisco cresceu nesse ambiente paterno de rancor surdo, refugiado no amor e nos excessivos mimos de sua mãe, Luísa Carlota de Nápoles. Ao chegar à puberdade, era um menino muito bonito, baixo e gordo, de maneiras efeminadas e uma constante obsessão pela roupa requintada, pelos perfumes e adornos extravagantes. Algum tempo depois, os mexericos da corte já lhe atribuíam o seu primeiro amante na figura do duque de Baños, com quem Francisco exibia a sua afetada elegância em locais de diversão frequentados pela aristocracia e pela nova classe política.

Entretanto, sobreveio a restauração de Fernando VII, que não honrou o seu cognome de O Desejado ao derrogar a constituição liberal de 1812 (a famosa "Pepa") e provocar com isso uma série de revoltas que o obrigaram a estabelecê-la e a admitir um governo liberal. O triénio progressista terminou abruptamente com a invasão dos "Cem mil filhos de São Luís", uma tropa francesa enviada pela Santa Aliança para repor o regime absolutista. Em 1829, Fernando VII casava-se com Maria Cristina de Bourbon, que lhe deu uma filha chamada Isabel. Para que ela pudesse herdar o trono, o rei aboliu a tradicional Lei Sálica, que excluía as mulheres da sucessão, o que causou a indignação dos sectores conservadores ultracatólicos, que começaram a plantar a candidatura do infante Carlos, irmão de Fernando e, até então, legítimo herdeiro. O soberano faleceu em 1833 e Maria Cristina apressou-se a coroar a filha e a assumir a regência.

Isabel II tinha três anos de idade quando foi proclamada rainha de Espanha, com o desacordo dos ultramontanos que desencadearam a chamada primeira guerra carlista. Em 1840, as tropas reais obtém uma difícil vitória, comandadas pelo hábil e ambicioso general Baldomero Fernández Espartero. A rainha-mãe cede-lhe então a regência, que termina três anos depois com a declaração da maioridade de Isabel. Por volta dos treze anos, a rainha era uma menina gorda e caprichosa e, ao mesmo tempo, um tentador partido político para todos os grupos internos e numerosos governos europeus. Todos começaram a procurar-lhe um noivo, atendendo aos vários interesses em causa.

Entre os aspirantes com mais possibilidades estavam Leopoldo de Saxe-Coburgo, favorito da rainha-mãe; Carlos Luís Bourbon, conde de Montemolín, proposto pelos franceses, e Pedro de Bragança, filho do rei de Portugal, que na altura teria apenas oito anos. Mas os reinos patrocinadores vêem os seus candidatos recusados uns atrás dos outros. Surge então a ideia de organizar o duplo matrimónio de Isabel II e de sua irmã, a infanta Maria Luísa, com dois noivos que compensassem as diferenças políticas e dinásticas no teatro europeu. O rei de França, Luís Filipe de Orleães, aproveita e monta um maquiavélico plano. Os seus agentes em Espanha asseguraram-lhe que Francisco de Assis era homossexual e diz-se que a própria Luísa Carlota confirmou em segredo esta condição do seu filho, com a esperança de o rapaz se esforçar e lhe dar um neto que pudesse reinar. Luís Filipe, mais céptico, acredita ser pouco provável que isso ocorra e concretiza a sua proposta: Isabel casar-se-á com Francisco, que é um Bourbon, e a infanta Maria Luísa, com António de Orléans. Se, como era de esperar, a rainha e o seu cônjuge não tivessem descendência, a Casa de Orléans passaria a deter a coroa de Espanha.

Maria Cristina aceitou esta opção para consolidar as suas delicadas relações com a França e o matrimônio recebeu a aprovação do governo e das cortes. A única que se opôs frontalmente ao casamento foi a própria noiva que, de acordo com as crónicas, caiu num histérico ataque de choro e ameaçou abdicar, gritando: "Com Paquito não! Com Paquito não!".

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 204-8.

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