"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O dia do juízo (Parte 3)

O julgamento final (detalhe), Fra Angelico

Todos levantaram-se.

E durante dois dias prepararam-se para a festa. Fariam um ataque-surpresa. Filipe queria que a abadia fosse totalmente destruída pelo mais cruel e violento saque de que a Europa tivera notícias.

Se o castelo de Albey permanecera exatamente igual, o mosteiro de Louvenne, ao contrário, estava muito diferente. Havia sido ampliado em quase dois terços da construção original. Já do lado de fora, podiam ser percebidos ornamentos luxuosos, e, pelos rumores que se escutava, era possível concluir que a festa que se realizava em seu interior devia ser memorável.

Seus homens armados de espadas, pedras e archotes se aproximaram. A ferocidade deles aumentava na medida em que o mosteiro se tornava mais palpável. Fanatizados pela ideia de que sua missão era divina, adquiriam uma nova e poderosa força. Essa era a maior arma que possuíam, embora não tivessem consciência disso.

Enquanto isso, no interior da abadia, com todos ignorantes do que se passava la´fora, a festa prosseguia.

À cabeceira da comprida mesa de carvalho, encontrava-se Samuel Garbois. A sua frente desfilavam faisões, porcos e carneiros, frutas e vinho com fartura. O abade rejubilava-se. Sua abadia ostentava um raro luxo para a época. Com seus 66 anos, era um homem bastante velho, mas vivera o suficiente para ver seu sonho realizado.

O excesso de alimentos e vinho ingeridos criava uma certa sensação de irrealidade. Era um homem obcecado por uma ideia que vira pouco a pouco, ao longo de trinta anos, ser transformada em realidade. Agora que estava tudo concluído, olhava sua obra com certa incredulidade. Era um sonho que se materializava; e agora, o que fazer? Contemplar a obra, apenas isso. Não restava mais nada. Tentava, mas não conseguia esconder uma certa sensação de vazio, apesar de todo júbilo. Eram sentimentos contraditórios que brigavam dentro dele e turvavam sua plena realização naquele dia.

Se pudéssemos penetrar em seus pensamentos, veríamos desfilar em sua cabeça todas as relíquias e tesouros acumulados nesses anos, veríamos pedra por pedra assentada que tornara a Abadia de Louvenne a maior de toda a região.

Veríamos, também, a incômoda certeza de que tudo estava concluído e que não restava mais nada a fazer além de esperar a morte.

Algo de anormal estava acontecendo. Mergulhado em seus pensamentos, não notara que havia uma certa agitação no ar, que trouxe Samuel Garbois de volta ao local onde se encontrava. Estava entorpecido pelo vinho, a visão turvava-se a sua frente, mas percebeu que algo ocorria. Havia uma tensão que fazia com que as pessoas falassem mais baixo, como se estivessem à espera de um grande acontecimento; o ar tornara-se quente e pesado. Começaram os ruídos, no princípio quase inaudíveis, depois fortes demais para se poder ter a ilusão de que era só impressão. O cheiro de fumaça começou a se espalhar e em pouco tempo podia-se ouvir as pessoas tossirem sufocadas, e a fumaça tornou-se tão espessa que a embriaguez do vinho já não era capaz de turvar nada, pois já não se via nada, ou quase nada. Começaram a cair as pedras. Eram tão grandes que cada uma que caía provocava um estrago considerável. As pessoas, apavoradas, começaram a correr sem saber para onde ir, e a maioria acabou seu caminho na ponta de uma espada. Samuel Garbois não se movia. Em algum lugar nesse processo, a razão o abandonara, e através de seus olhos dementes o que se poderia enxergar era a própria visão do apocalipse. Quando viu Filipe parado a sua frente, acreditou realmente que o Dia do Juízo chegara e que os mortos finalmente haviam se levantado.

Filipe olhou para o abade por uns instantes. Aquele homem que sempre causara asco, agora, encurralado naquela cadeira, com os olhos ensandecidos vendo apenas destruição a sua frente, só conseguia lhe despertar pena. Não teve coragem de matá-lo.

Ordenou bruscamente a seus homens que levassem tudo o que pudessem carregar, e o que não pudessem, destruir. Partiram para o Castelo de Albey, onde Filipe pretendia assumir o lugar que era seu de direito, de Senhor do Castelo.

Samuel Garbois olhou ao seu redor. O fogo ainda ardia em alguns pontos. Viu homens estendidos pelo chão. Um rio quente de sangue corria sob seus pés. De seu sonho só restavam escombros. Sentou-se em um banco semidestruído e teve ainda um momento de lucidez, o suficiente apenas para perceber que de medo havia se sujado todo.

Cristina Leminski. O dia do juízo. In: YASBEK, Mustafá. Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo; Clube do Livro, 1988. p. 25-28.

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