"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Fundação religiosa do racismo

Bebedeira de Noé, Giovanni Bellini

Noé embebedou-se celebrando a chegada da arca ao monte Ararat.

Despertou incompleto. Segundo uma das diversas versões da Bíblia, seu filho Cam o havia castrado enquanto ele dormia. E essa versão diz que Deus amaldiçoou Cam e seus filhos e os filhos de seus filhos, condenando-os à escravidão pelos séculos dos séculos.

Mas nenhuma das diversas versões da Bíblia disse que Cam era negro. A África não vendia escravos quando a Bíblia nasceu, e Cam escureceu sua pele muito tempo depois. Talvez sua negritude tenha começado a aparecer lá pelos séculos XI ou XII, quando os árabes iniciaram o tráfico de escravos do sul do deserto, mas certamente Cam passou a ser totalmente negro lá pelos séculos XVI ou XVII, quando a escravidão se transformou no grande negócio europeu.

A partir de então, outorgou-se prestígio divino e vida eterna ao tráfico negreiro. A razão a serviço da religião, a religião a serviço da opressão: como os escravos eram negros, Cam devia ser negro. E seus filhos, também negros, nasciam para ser escravos, porque Deus não se enganava nunca.

E Cam e seus filhos e os filhos de seus filhos teriam cabelo crespo, olhos vermelhos e lábios inchados, andariam nus exibindo seus pênis escandalosos, seriam praticantes do roubo, odiariam seus amos, jamais diriam a verdade e dedicariam às coisas sujas seu tempo de dormir.

GALEANO, Eduardo. Espelhos: uma história quase universal. Porto Alegre: L&PM, 2015. p. 39-40.

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