"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O populismo no Brasil: o segundo governo Vargas

Nos jornais toda a história de uma época,
 O suicídio de Vargas (Última Hora)


O fim do Estado Novo sugeria que as antigas oligarquias tinham chances de retornar ao comando político. Mas isso só na aparência, pois o Brasil dos anos 1940 era profundamente diferente daquele que havia existido durante a República Velha. Dentre essas mudanças, talvez a mais importante tenha sido a que dizia respeito ao novo eleitorado que então surgira.

Em consequência das reformas educacionais e da incorporação do voto feminino, os índices de participação eleitoral, em declínio desde fins do Império, quando então os analfabetos foram excluídos do direito de votar, haviam aumentado sensivelmente. Por volta de 1945, além de mais numerosas do que nunca, os eleitores brasileiros também apresentavam um perfil cada vez mais urbano. [...]

Como seria de esperar, tal mudança implicava uma alteração profunda no perfil dos candidatos e dos votantes. Esses últimos ficaram cada vez menos sujeitos aos coronéis, enquanto os primeiros não mais precisavam ser originários da elite agrária, dependendo agora do próprio carisma, da representatividade junto aos trabalhadores ou de uma máquina clientelista bem azeitada em conceder favores e empregos. Uma vez mais, deve-se reconhecer a sagacidade do antigo ditador em perceber essas transformações, explorando-as habilmente. A conjugação entre a propaganda política, que dela fazia o "protetor dos pobres", e a utilização de sindicatos e institutos de previdência garantiu seu prestígio junto aos eleitores urbanos, tornando-o, em grande parte, independente das antigas oligarquias. Mais ainda: através do PTB, Getúlio garantiu uma dimensão nacional a seu projeto político.

Após o fim do Estado Novo, a amanga experiência eleitoral vivida pelos egressos do antigo Partido Republicano Paulista, em contraste com o retorno do ex-ditador ao poder, ilustra esse estado de coisas. Por isso mesmo, para muitos pesquisadores, os anos de 1950 constituem um momento de consolidação de uma prática política definida como "populismo": multiplicam-se os políticos que apelam para as classes urbanas, e não mais se consideram as elites como portadoras de um modelo a ser seguido.

No caminho de retorno de Getúlio Vargas existia, porém, um obstáculo: o exército. [...] os generais o haviam deposto em 1945. Seu retorno à presidência em 1951 implicava negociações. Essas, por sua vez, foram bem-sucedidas. Para muitos militares, Getúlio, por ser um político com forte apelo popular, servia como antídoto frente à expansão do comunismo. Em 1945, o PCB, apesar de legalizado às vésperas das eleições, conseguiu eleger 14 deputados e Luís Carlos Prestes, como senador; o que representava o voto de mais ou menos 12% do eleitorado brasileiro; sendo que em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, tal cifra pulava para 20%.

Nessa época, um impasse a respeito dos rumos que deveria tomar a sociedade brasileira dividia o exército. Até o início dos anos 1940, o debate a respeito do desenvolvimento nacional era dividido em duas correntes: uma, existente desde o início do século XX, defendia a "vocação agrícola" de nossa sociedade e a outra posicionava-se a favor da industrialização acelerada. Ora, durante o governo Dutra, a primeira posição perdeu o sentido, pois a maior parte da economia brasileira passou a girar em torno do desenvolvimento industrial.

Devido às transformações implementadas ao longo do primeiro governo de Getúlio Vargas, o modelo de industrialização deparava-se agora com sérias dificuldades. Não se tratava mais de simplesmente substituir os produtos de consumo importados por similares nacionais, mas sim incrementar um modelo de desenvolvimento industrial articulado. Em outras palavras, tratava-se de saber como seria possível produzir internamente automóveis, navios e maquinário ligado à mecânica pesada - bens que dependiam de capitais elevados e tecnologia avançada.

Frente a tais questões, surgiram profundas divisões no seio das elites brasileiras, incluindo aí aquelas pertencentes às forças armadas. De forma esquemática, é possível identificar os que, de um lado, defendiam o nacionalismo econômico e a intensiva participação do Estado no desenvolvimento industrial, ao passo que na posição oposta estavam os partidários de que o segundo ciclo de nossa industrialização deveria ser comandada exclusivamente pela iniciativa privada brasileira, associada a capitais estrangeiros.

Embora não fosse frontalmente contrário aos investimentos internacionais, Getúlio era partidário da corrente nacionalista. Foi justamente com base nos segmentos do exército identificados a essa tendência que ele conseguiu apaziguar temporariamente os quartéis. No entanto, a trégua não durou muito. Dentre o grupo identificado ao segundo modelo de desenvolvimento industrial, havia uma parcela importante da elite civil, reunida em torno da UDN. De certa maneira, a fragilidade eleitoral desse grupo era compensada em razão do prestígio que contava junto a importantes segmentos das forças armadas.

As circunstâncias políticas internacionais em grande parte favoreciam a UDN. [...] durante a Segunda Guerra Mundial, em razão da luta contra o nazi-fascismo, houve uma aproximação entre os Estados Unidos e a União Soviética. O reflexo disso foi um certo declínio das posturas anti-comunistas por parte dos governos capitalistas aliados. No Brasil, houve inclusive a legalização do PCB, ainda que por um curto período. Porém, após a guerra, a posição norte-americana sofreu uma inflexão: o comunismo torna-se a principal ameaça. Razões para isso não faltavam. Por volta de 1950, o sistema comunista havia deixado de ser uma experiência isolada, sendo agora compartilhado por um número crescente de países do leste europeu, tais como a antiga Iugoslávia (1945), a Bulgária (1946), a Polônia (1947), a então Checoslováquia (1948), a Hungria (1949) e a extinta República Democrática Alemã Oriental (1949); assim como asiáticos, o Vietnã do Norte (1945), a Coréia do Norte (1948) e a China (1949).

O quadro mundial tornava-se ainda mais delicado em razão do desenvolvimento de armas atômicas. Em 1945, os Estados Unidos, nos ataques a Hiroshima e Nagasaki, haviam demonstrado as consequências desse poderio. Quatro anos mais tarde foi a vez da antiga União Soviética revelar ao mundo seu arsenal atômico, em testes feitos no deserto do Casquistão. Em um contexto como esse, um confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética colocaria em risco a sobrevivência do planeta. Essa situação levou à transferência dos conflitos para os países subordinados a cada uma dessas potências. Como seria de esperar, a nova política internacional concedia pouca autonomia às áreas de influência; atitude que implicava ver nas políticas nacionalistas dos países subordinados, ora - no caso do bloco soviético - uma guinada rumo ao capitalismo, ora - no caso do bloco norte-americano - um passo em direção ao comunismo.

No início dos anos de 1950, parte do exército brasileiro e a União Democrática Nacional, que na época de sua fundação chegou a contar com um pequeno agrupamento de socialistas - depois estabelecidos em partido próprio -, transitaram para posturas cada vez mais afinadas com o anticomunismo, acusando Getúlio de tramar novos golpes, agora com base nos setores nacionalistas e sindicais.

Dessa forma, a Guerra Fria que, inicialmente, contribuiu para o retorno do ex-ditador, visto como uma forma de contrabalançar a influência dos comunistas, tornou-se um elemento pouco favorável a sua continuidade no poder. Ciente dessa fragilidade, Vargas, bem a seu estilo, procura cooptar seus opositores. No exército, promove hierarquicamente, a partir de 1952, os grupos anti-nacionalistas. O mesmo é feito em relação aos políticos da UDN, a quem são oferecidas pastas ministeriais. A tentativa de cooptação estende-se ainda aos comunistas: em 1952, deixa de ser obrigatória a apresentação de atestado ideológico, dado pela polícia aos dirigentes sindicais.

Paralelamente a isso, é aprofundada a política econômica nacionalista, com a aprovação de leis de grande impacto junto à opinião pública, como as referentes à limitação de remessas de lucros de empresas estrangeiras ou à criação da Petrobrás, que passa a deter o monopólio da exploração do petróleo brasileiro. A ousadia do presidente não pára aí. Em 1953, Getúlio procura reforçar sua base popular, indicando um jovem político com amplo apoio sindical para ocupar o cargo de ministro do Trabalho. Seu nome: João Goulart.

O novo líder trabalhista não esconde a opção política, atendendo às reivindicações de reajustamento do salário mínimo, aumentando-o em 100%. A crise se instala. O exército, uma vez mais, é o porta-voz do descontentamento das elites. Em fevereiro de 1954 vem a público o Manifesto dos Generais. O texto é um exemplo do radicalismo comum ao período da Guerra Fria. Queixando-se de que o aumento não era extensivo às forças armadas, os oficiais aproveitam a ocasião para denunciar a ameaça da República Sindicalista, assim como a "infiltração de perniciosas ideologias antidemocráticas", ou, então, para alertar a respeito do "comunismo solerte sempre à espreita...", pronto para dominar o Brasil.

Em vez de cooptar as elites, Getúlio consegue assustá-las.

Diante da crise, Vargas afasta João Goulart do cargo, mas mantém o aumento. A UDN, através do seu mais radical líder, Carlos Lacerda, multiplica as acusações de corrupção, nepotismo e de uso de dinheiro público para promover jornais favoráveis ao governo. Por outro lado, o governo "acima dos partidos" acaba até mesmo por afastar os aliados tradicionais. Em junho de 1954, o congresso vota o impeachment de Getúlio Vargas. O pedido é rejeitado, mantêm-se, entretanto, fortíssimas pressões pela renúncia. Em agosto, um atentado a Carlos Lacerda, no qual estavam envolvidos elementos próximos a Vargas, sela definitivamente o destino do presidente. Um novo golpe militar é posto em marcha, mas acaba não dando certo. Vejamos por quê.

Fragmento da carta-testamento encontrada no arquivo particular de Getúlio Vargas, 1954

Se a simples renúncia ao posto a que fui levado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranquilo no chão da pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para com mais fúria perseguirem-me e humilharem-me. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas. Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não dos crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes. Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue dum inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus. (D'ARAÚJO, Maria Celina (org.). As instituições brasileiras da Era Vargas. Rio de Janeiro: FGV/EdUerj, 1999. p. 161.)

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História da Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 332, 334-7.

Nenhum comentário:

Postar um comentário