"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 7 de novembro de 2015

Voltaire: história e civilização

Voltaire, ca. 1724-1725. Nicolas de Largillière

[...] para Voltaire são os homens que fazem a própria história. Mas sua perspectiva é radicalmente distinta e até contrária à de Rousseau. Segundo Voltaire, os principais males que atacam os homens vêm exatamente da ignorância, dos entraves ao desenvolvimento da razão. Sua filosofia da história obedece pois a um princípio intelectualista. É certo que a categoria fundamental de sua reflexão sobre a história é a do progresso, entendido como uma caminhada da humanidade em direção a algo melhor. E o melhor, para Voltaire, não é o estado primitivo dos homens, mas exatamente o estado de civilização.

Contudo, Voltaire não crê que a trajetória do progresso seja linear, e que os homens, desde o início da civilização, tenham caminhado sempre em direção ao melhor. Ao contrário, o que a história mostra é que há épocas em que esse progresso é quase inexistente, outras nas quais ele foi praticamente interrompido, e mesmo épocas nas quais tudo o que o homem havia adquirido se perdeu, lançando-se de volta à ignorância.

A partir daí, Voltaire desenvolve a sua teoria da história, que poderíamos chamar de doutrina dos "grandes séculos". Segundo essa doutrina, a humanidade conheceu quatro grandes períodos, ou "grandes séculos". O primeiro ocorreu na Grécia antiga, entre os séculos V e IV a.C. Nessa época, marcada especialmente pelos reinados de Filipe da Macedônia e Alexandre Magno, viveram Péricles, o grande orador e estadista, os filósofos Aristóteles e Platão, o arquiteto Fídias. O segundo grande período se deu no Império Romano, durante o consulado de Júlio César e o reinado de Augusto (séculos I a.C. e I d.C.). Nesse período viveram grandes pensadores e artistas, como os filósofos Lucrécio e Cícero, o historiador Tito Lívio, os poetas Virgílio, Horácio e Ovídio. A terceira grande época é a do Renascimento na Itália (séculos XIV a XVI). Foi um tempo de profunda mudança intelectual e cultural, de efervescência artística inigualável. Por último, o quarto grande período é o século XVII, dominado pelo reinado de Luís XIV na França. Foi nesse momento que surgiu a filosofia moderna e que filósofos como Descartes, Locke e Newton contribuíram para uma revolução geral no pensamento.

Se observarmos que critérios Voltaire utiliza para determinar a grandeza de uma época, veremos que ele seleciona exatamente os períodos em que as nações viram florescer as artes, a filosofia, a indústria, as técnicas. Para ele, portanto, as grandes épocas são aquelas de maior brilho e desenvolvimento da civilização. Ao contrário de Rousseau, Voltaire considera a injustiça e a servidão não como males da civilização, mas como efeitos da ignorância e da falta de conhecimento. É precisamente por isso que ele acredita ser tarefa fundamental do filósofo o esclarecimento do homem. Os povos instruídos, que conhecem seus direitos, não se deixam facilmente enganar ou explorar.

Enquanto para Rousseau os melhores livros para os jovens são aqueles de história antiga, para Voltaire [...] os estudantes não devem perder tempo com as coisas de antigamente, mas voltar a atenção para seu próprio tempo.

Parece-me que se quiséssemos aproveitar o tempo presente, não passaríamos a vida a nos encasquetar com fábulas antigas. Eu aconselharia a um jovem que tivesse uma ligeira tintura destes tempos recuados, mas que começasse um estudo sério da história pelo tempo em que ela se torna verdadeiramente interessante para nós, ou seja, pelos fins do século XV. A imprensa, inventada nesta época, começa a tornar a história menos incerta. A Europa muda de face [...]. A América é descoberta. Um mundo novo é subjugado, e o nosso mundo é quase inteiramente transformado. A Europa cristã torna-se uma imensa república, na qual a balança do poder se torna mais bem equilibrada do que na Grécia antiga. Uma correspondência perpétua liga todas as suas partes, apesar das guerras suscitadas  pela ambição dos reis, e apesar das guerras religiosas, ainda mais destrutivas. As artes, que fazem a glória das nações, são levadas a um ponto que Grécia e Roma nunca conheceram. Eis a história que todos precisam conhecer. Nela não encontramos nem predições quiméricas, nem oráculos mentirosos, nem falsos milagres, nem fábulas insensatas [...], Tudo nesta época nos diz respeito, tudo é feito para nós [...]. Não há nem um particular na Europa cujo destino não tenha sido influenciado por todas estas mudanças. (Voltaire, Observações sobre a história.)

Outro aspecto importante da filosofia da história segundo Voltaire é seu caráter anticristão. Para ele, ao ensinar que os homens estão neste mundo apenas de passagem, e que o mais importante é que eles se preparem para alcançar a felicidade no céu, o cristianismo desvia a atenção humana das questões terrestres, tornando-se uma causa de alienação. Enquanto aguardam a justiça divina, os homens aceitam sem reclamar as injustiças na terra, deixando-se enganar pelos dominadores, sobretudo pelos padres.

Por outro lado, segundo Voltaire, é uma ilusão pensar que os motivos que levam os homens a agir sejam sempre de natureza moral ou religiosa, mesmo que eles assim o digam. Tomemos como exemplo um acontecimento histórico importante como as Cruzadas: a Igreja conclamou os povos da Europa a ir ao Oriente para combater os não-cristãos que haviam se apossado de Jerusalém. Assim, as Cruzadas foram, aparentemente, uma guerra de princípios religiosos. Contudo, não foi apenas por fervor religioso que os europeus invadiram a Terra Santa. Isso é o que aparecia no discurso dos papas, mas as verdadeiras causas foram econômicas: esperava-se, com a conquista da Palestina, obter mais terras, estabelecendo mais feudos para a nobreza endividada e empobrecida do século XI. É por isso que, para Voltaire, a tarefa do historiador é essencialmente crítica e deve demonstrar as verdadeiras causas dos acontecimentos, desfazendo as ilusões e denunciando os enganos.

NASCIMENTO, Milton Meira do; NASCIMENTO, Maria das Graças S. Iluminismo: a revolução das luzes. São Paulo: Ática, 2008. p. 43-5. (História em movimento)

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