"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 4 de julho de 2015

A guerra na Antiguidade: ocupações, saques e preservação do conhecimento

A queda de Troia, Johann Georg Trautmann

"Como o desencadear de um terrível furacão, avassalei por inteiro o Elam, cortei a cabeça de Teuman, o seu Rei fanfarrão, que planejara o mal. Não tem conta os seus guerreiros que eu matei, e os que apanhei vivos com as minhas mãos [...] Hamanu, a cidade real do Elam, eu cerquei, eu capturei [...] eu a destruí, eu a devastei, eu a incendiei. Eu sou Assurbanípal, o grande rei, o poderoso rei, rei do universo, rei da Assíria, rei das quatro regiões do mundo, rei dos reis, príncipe inigualado, que ao comando de Assur [...] exerce o governo do mar superior ao inferior, e pôs submissos a seus pés todos os príncipes".
(Citado in: KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia, o berço da civilização. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983)


[...]


Tudo o que resta são prédios em ruína e um monte de destroços. A imagem é de destruição e sofrimento. A guerra é a mais primitiva forma de o ser humano resolver seus problemas com os outros. Talvez já existisse na Pré-História, mas foi com a formação das primeiras civilizações que a guerra se generalizou. Lutava-se pela posse de terras, cidades, riquezas, escravos...

O rei ou imperador era respeitado e temido pelas suas conquistas. Para eternizá-las, mandava escrever nos papiros, esculpir em pedra e pintar em seus palácios e túmulo suas vitórias militares e as punições que infligiu aos inimigos. Os reis assírios, por exemplo, que conquistaram a Mesopotâmia (século XII-VIII a.C.), orgulhavam-se do massacre que realizaram e de como destruíram campos de cultivo e canais. O Império Persa, mesmo tendo exercido uma dominação mais tolerante [...], também foi formado à custa da perda de milhares de vidas e da destruição de bens materiais. A ação guerreira desses governantes era muito admirada. O imperador Ciro passou à História como "o Grande", em lembrança de suas conquistas.

[...]

Na Antiguidade, os poderes político e militar estavam reunidos na mesma pessoa: o rei. Era ele quem ia à frente do exército, estimulando seus guerreiros e desafiando a morte. Foi em combate aberto que o imperador persa Ciro morreu, juntamente com a maior parte de seus homens. Havia ocasiões em que os generais inimigos se enfrentavam sozinhos, e o resultado dessa luta definia a guerra.

O vitorioso dessas guerras tinha direito de se apoderar dos bens, da família e dos súditos do perdedor. A sua ideia de riqueza era a quantidade de produtos saqueados do inimigo. Seus soldados eram recompensados com os bens roubados da população conquistada. Ao retornarem ao seu país, faziam questão de desfilar pelas ruas exibindo os objetos e os prisioneiros de guerra. A cidade de Persépolis, por exemplo, foi saqueada pelo exército de Alexandre Magno (século IV a.C.) durante vários dias e depois incendiada. Um escritor grego afirmou que foram usadas 10 mil mulas e 5 mil camelos para transportar os seus tesouros.

[...]

Apesar das guerras, ocupações e saques, os conhecimentos desenvolvidos pelos homens e mulheres não foram totalmente perdidos. Muitas vezes, por iniciativa do novo governante (mesmo estrangeiro) e pela persistência da população, as criações humanas foram preservadas. Desse modo, os textos mesopotâmicos, incluindo o código de Hamurábi, foram copiados e reunidos nas bibliotecas dos reis conquistadores; os estudos astronômicos continuaram a ser realizados, mesmo sob o domínio estrangeiro; a técnica dos artesãos, a habilidade comercial dos mercadores e o saber tradicional dos escribas não se dispersaram totalmente quando as cidades mudaram de senhores; a experiência agrícola dos camponeses, as técnicas de fiação e tecelagem foram transmitidas pelos pais ao seus filhos e filhas.

Assim, parte do conhecimento sobreviveu à destruição material e humana provocada pelas guerras. E isso graças à ação de homens e mulheres que, mesmo arruinados pelos saques, continuaram a transmitir o que sabiam aos seus descendentes. Se assim não fosse, ao fim de cada guerra, os perdedores teriam de descobrir, por sua própria experiência. o que seus antepassados levaram séculos ou milênios para aprender e desenvolver. Nos dias atuais, a população de países envolvidos em guerras também não se esquece de seus conhecimentos e práticas cotidianas. É comum, por exemplo, que professores ensinem crianças a ler e escrever dentro de campos de refugiados.

Hoje, quando visitamos as ruínas de capitais dos impérios antigos, ficamos maravilhados com a grandiosidade de seus palácios, a imponência de suas colunas e a riqueza de suas decorações. Imaginamos os imperadores vaidosos e orgulhosos de suas conquistas desfilando com seus exércitos e ordenando a decapitação dos inimigos. O que restou de suas vitórias e domínios são, agora, vestígios arqueológicos. No entanto, o conhecimento cultural, técnico e artístico dos povos conquistados preservou-se e propagou-se, e faz parte do nosso dia-a-dia. A roda, a metalurgia, o alfabeto, os cálculos matemáticos e geométricos, o pensamento religioso, os contos e mitos sobreviveram ao tempo e às guerras.

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RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 153-55.

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