"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 15 de maio de 2015

A vida cotidiana dos astecas: Vida rural e vida urbana

Homens astecas compartilhando uma refeição. Artistas desconhecidos, Codex Florentine

Tudo leva a crer que quando os “bárbaros astecas” (Azteca Chichimeca) do século XII iniciaram sua migração ainda não praticavam a agricultura. A caça, a pesca (dizia-se que Aztlán era uma ilha no meio de um lago) e a coleta constituíam a base da sua subsistência. Foi em contato com as populações sedentárias do planalto Central que os mexicanos, à semelhança de outros “bárbaros”, adotaram o modo de vida tradicional, com suas técnicas praticamente inalteradas desde o IV milênio a.C., isto é, a cultura de milho, vagens, plantas oleaginosas (amaranto e sálvia), abóbora, tomate e pimenta; a tecelagem (fibras de agave: ixtle) e a cerâmica. Essas técnicas subsistiram até hoje no essencial como base da vida rural de todos os povos indígenas, quaisquer que fossem as suas etnias. Fixando-se nas ilhas do lado, os astecas aí encontraram terras escassas demais para o cultivo. Seu modo de vida inicial também era semelhante ao das tribos ribeirinhas, que se denominavam atlaca chichimeca, “povos bárbaros da água” ou “selvagens lacustres”: os peixes, crustáceos e moluscos do lago, assim como os pássaros de água, em muito contribuíram para sua alimentação. É significativo que eles tenham adotado divindades próprias dos “selvagens lacustres” de Tláhuac e de Churubusco, e que tenham até mesmo cantado nos templos do México, hinos como o de Aminitl, o deus da caça aos pássaros aquáticos, expressos em “chichimeca”, ou seja, um dialeto bárbaro incompreensível para os astecas.

No apogeu do Império, essa situação já estava profundamente alterada. Graças às suas conquistas, a tribo dispunha de extensas áreas no vale e nas províncias. O culto de Tlaloc e dos deuses do milho desempenhavam um papel preponderante no ritual. Todavia, uma parcela importante dos recursos alimentares ainda procedia da pesca e da caça. Por outro lado, uma considerável proporção da população asteca consagrava-se inteira ou parcialmente a atividades não agrícolas: serviço militar, sacerdócio. Administração e artesanato. Os gêneros alimentícios provinham tanto de trocas, como dos impostos em espécie arrecadados nas províncias. Com os campos, hortas e jardins, as criações de perus e os bosques, os domínios atribuídos aos dignitários formavam unidades econômicas semelhantes às “vilas” romanas do Baixo Império. Ali se produzia toda a espécie de gêneros agrícolas; e as mulheres ou os escravos fiavam e teciam.

A cerâmica asteca, mais utilitária do que artística, parece ter sido produzida em massa nas oficinas. A cerâmica de luxo, maravilhosamente decorada com motivos policromados, era importada de Cholulá e do território mixteca. Foi por essa época que os astecas, à frente de um vasto império, adotaram a vida urbana. Sua capital, Tenochtitlán, ampliada em 1476 pela anexação de Tlatelolco, estendia-se então por um milhar de hectares de ilhas e terras pantanosas, que dois séculos de labuta gigantesca haviam transformado em uma rede geométrica de canais, ruas e praças, verdadeira Veneza ligada às margens por três passagens elevadas: Tepeyacac, ao norte, Tlacopan, a oeste, e Iztapalapan, ao sul. A cidade abrigava de 80 mil a 100 mil domicílios, ou seja, um total de mais de 500 mil habitantes. Essa população estava em via de se ampliar, como a dos subúrbios costeiros, que também tendiam a avançar sobre a lagoa com casas construídas sobre pilotis. Toda a população, incluindo a de cidades como Azcapotzalco, Chapultepec, Coyoacán etc., devia ultrapassar 1 milhão de habitantes.

[...]

O principal centro comercial da cidade situava-se em Tlatelolco. Sobre uma imensa praça rodeada de arcadas e próximo a uma pirâmide, existia um mercado, ao qual compareciam diariamente de 20 mil a 25 mil pessoas, e de 40 mil a 60 mil pessoas a cada cinco dias. Enormes quantidades de mercadorias, cada qual com uma localização determinada, eram aí trocadas: tecidos e vestimentas, plumas e jóias, peles e plumagens, milho, vagens, pimentas, legumes, frutas e ervas, pássaros e caça, peixes, rãs, vasos, utensílios de sílex, obsidiana e cobre, madeira, tabaco e cachimbos, móveis e esteiras. Havia lojas de boticários, cabeleireiros, vendedores de bolos de milho e guisados assados. Uma polícia especial zelava pela boa ordem do tianquiztli (mercado), e um tribunal composto de três magistrados estava permanentemente a postos para resolver os litígios.

A suntuosidade dos palácios dos poderosos maravilhou os conquistadores espanhóis. [...] Em Texcoco, o rei Nezaaulcoyotl ordenara a construção de um palácio com mais de 300 peças, com jardins ornados de fontes e chafarizes. Pássaros, peixes e outros animais eram aí conservados vivos ou representados em ouro ou pedra. Em Tetzcotzinco, o mesmo soberano criara um parque de extraordinária magnificência, irrigado por um engenhoso sistema de canais. Motecuhzoma dispunha de residências campestres, onde pássaros de toda espécie eram alimentados e tratados por uma multidão de serviçais.

Não é preciso dizer que as casas dos maceualtin eram muito simples. Cada casa, entretanto, possuía, em seu próprio terreno, um jardim e um banho a vapor (temazcalli).

Mesmo nas casas dos dignitários, o mobiliário reduzia-se a pouca coisa: esteiras (petlatl), cadeiras de espaldar em vime, mesas baixas, biombos ou para-ventos de madeira, cestos, pinturas em tecidos ou em peles. Nas casas populares, a lareira, cercada de três pedras, ocupava o centro da habitação. Cozinhava-se a lenha ou carvão vegetal. A iluminação se fazia por meio de tochas resinosas.

O México precisava de água potável, visto ser salobra a das lagunas. No início, os astecas puderam contentar-se com as fontes que brotavam entre os rochedos da ilha, onde se erigia o templo de Uitzilopochtli. Com o aumento da população, porém, tornou-se necessário construir, sob o reinado de Motecuhzoma o Antigo, o primeiro aqueduto para transportar até o centro da cidade a água das fontes de Chapultepec. Esse aqueduto, com cinco quilômetros de extensão, era formado por dois condutores, apenas um dos quais era utilizado de cada vez, enquanto se limpava o outro. No tempo de Auitzotl foi construído um segundo aqueduto entre Coyoacán e o centro. A água era distribuída por carregadores que circulavam de barco pela cidade. Vendiam-na também em jarros nos mercados.

Terríveis inundações devastavam periodicamente a cidade. Sob Motecuhzoma I, construiu-se, em 1449, um dique de 16 quilômetros de comprimento, destinado a proteger a cidade contra as inundações do grande lago. Auitzotl precisou fazer mergulhadores obstruírem a fonte da Acuecuexatl, cujas águas, jorrando com violência, haviam elevado o nível das lagoas, destruindo inúmeras casas. Nessa ocasião. Ele distribuiu à população esfaimada 200 mil carregamentos de milho, vestimentas e 32 mil barcos.

Equipes de trabalhadores, sob a direção das autoridades locais dos bairros, asseguravam a manutenção dos canais e aquedutos e a limpeza das ruas. Testemunhos da época são unânimes em reconhecer a higiene das vias públicas. De modo geral, Tenochtitlán era uma cidade organizada e salubre. Cortez, escrevendo a Carlos V, louvou intensamente a beleza das construções, a organização da vida coletiva e a “razão que os índios emprestam a todas as coisas”.


SOUSTELLE, Jacques. A civilização asteca. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 42-3, 45-7. (As civilizações pré-colombianas).

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