"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Obsidiana

Sacrifício humano. Codex Magliabechiano

A obsidiana é um mineral que, raspado, fornece um pó medicinal para a cura de ferimentos. Lustrado, transforma-se num luminoso espelho. Afiado e cortado, passa a ser uma poderosa arma. Essa pedra era muito conhecida pelos habitantes das cidades e aldeias que faziam parte de algumas das civilizações indígenas do continente americano.

Relato envolvente e hipnótico, Obsidiana mostra um europeu deparando-se com a morte nas terras distantes do além-mar. O choque entre dois universos incapazes de se entenderem reciprocamente. O homem encarado como ser divino aos olhos de outros homens. Os europeus observados com fascinação pelos povos não menos fascinantes do continente recém-descoberto.

* * *

"Observem os curiosos leitores se não é mesmo necessário ponderar sobre isto que aqui escrevo: que homens já existiram no universo que tal atrevimento tivessem?"
 [Bernal Díaz del Castillo, Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España]

* * *

Ao pé desta pirâmide contemplo agora o fim de toda a história. Foi daqui mesmo que eles nos fizeram ver, pela primeira vez, a imensidão da cidade armada sobre os pântanos. Daqui pude ver como fervilhava o inferno de pedras brancas e alaranjadas que essa gente construiu entre os canais. Cidade de águas e de torres. Daqui do alto foi que eu e os meus estendemos as mãos na direção dos horizontes incrustados de plumas, de flores, de sangue escurecido, de montanhas fumegantes, à luz de um ar tão limpo como não recordo termos deixado atrás.

Como deuses eles nos receberam por toda parte. Aportamos e durante toda a escalada eles nunca ousaram encarar nossos líderes frente a frente, curvando-se como o costume diante de seu imperador de barbas ralas. Vi como uivavam de pavor diante de nossos cavalos, prolongamento de corpos de cristãos. Vi como gemiam enquanto observavam os olhos amarelos de nossos cães acorrentados. Esperavam por nós para entregar o império; escancararam todas as portas. Nenhum rei mouro teve franqueado o uso do ouro que eles depositaram em nossa confiança, entregando de bom grado o pescoço, quando o pedíamos, ao mesmo braço que abarrotava de tesouros os porões dos navios de nossa esquadra.

Boca e garganta secas. Um cão que ladra, não dos nossos. O sangue já pode ser observado pelos canais. Agora os cristãos estão diante deles por toda parte. Mas esses seres combatem como feras acuadas desde a matança na festa do Pátio Sagrado. Combatem a cruz de Nosso Senhor. Repudiam a servidão ao imperador que está além do vasto oceano e dos altos vulcões. Agora nos entregam à sede dos seus ídolos escondidos no seio destes templos com ar morno de matadouro.

Quero cuspir e não consigo. Um deles se dá ao trabalho de desferir uma pancada em minhas pernas e volta mais uma vez a me ameaçar com sua bengala dourada no ar. Não deseja que fiquemos erguidos. Meu joelho ferido empurra todo o corpo para baixo. Desmorono como um pão encharcado, aos olhos dos meus companheiros, todos em silêncio. Assim é que se humilha um capitão castelhano.

É certo que isto termina logo. Não posso mais ficar em pé. A fraqueza mina toda resistência. Três dias aprisionados ao ar livre e sem alimentos. Os sacerdotes que formam um grupo à nossa frente retornam entoando seus longos lamentos: lentas litanias. Sacerdotes de longos cabelos negros e longas túnicas negras. Golpeiam o próprio peito e balançam as cabeças asquerosas repetindo essas orações que nunca poderemos compreender. Nunca chegaremos à tradução pura das palavras dessa língua.

Guerreiros vestidos com peles e cabeças de jaguar vigiam mantendo distância. Há outros, jovens também, com as mesmas e repelentes máscaras de águia. Movimentos suaves em ritmo de pesadelo. Alguns desses rapazes já empunham nossas armas brancas, embora ainda quase todos tenham nas mãos suas próprias espadas de madeira com placas encaixadas de obsidiana afiada. A pedra de Óbsio. A pedra escura de vidro dos africanos e que estava à nossa espera nestas alturas do mundo. Um dos sacerdotes parece querer mostrar-me um espelho de obsidiana que ostenta ao peito. Procuro minha face, mas ela vem e vai num relance. Outro sacerdote, com uma espada de lâminas de obsidiana presa pelas duas mãos, está perto de mim. Cristo que lhes abrigue as almas.

No chão, é onde estou ainda. O joelho apodrecendo há três dias, desde minha intervenção fracassada para salvar a vida do capitão-geral, enquanto todo nosso exército se arrastava sob a chuva, acossado na retirada, protegendo o ouro que já pesava aos ombros e aos animais.

Os demônios nos tiraram tudo. Meu elmo jogado longe e minhas roupas num monte, junto com as dos meus companheiros. O alarido da guerra que não deixamos de lhes fazer vem até aqui, nos alcançando em ondas espaçadas. O estrondo das armas de fogo chega, o prolongamento dos braços cristãos. Eles gritam batendo nas bocas com as mãos abertas e o som sopra de todos os cantos da cidade. Amaldiçoada cidade aprisionada que agora os nossos e os aliados que obtivemos na própria terra se empenham em devastar, erguendo as colunas de poeira e de fumaça que podemos perceber sem esforço. A lua é a mesma de quando estivemos aqui pela primeira vez, trazidos pelas mãos servis de chefes maiores dessa gente. A lua é imensa no céu claro, e a luz do sol parece lhe dar mais brilho.

Sacerdotes regam as feridas dos meus companheiros com um remédio da terra: a obsidiana raspada; um pó fino que ajuda a cicatrizar as chagas que as lâminas de seus fiéis seguidores provocaram. Chega minha vez.

Todos nus como chegamos a esta vida, é como estamos. O calor forte penetra mais agora que não temos proteção alguma sobre a pele. Calor do fogo eterno que eles mantêm neste templo; calor do sol que banha este solo desde o alto, fogo que transformou todas nossas obsessões em névoa durante os últimos dias e noites que aqui vivemos.

Em nome do nosso rei e do nosso deus desembarcamos deste lado do mundo. Em nome de seus reis e de seus deuses eles nos deram combate. Não vi guerra assim jamais: entre franceses ou entre italianos ou entre turcos. Por seus reis e por seus deuses eles querem nos dar fim. Neste instante tentam erguer-me com certo cuidado. Meu rosto se reflete na placa de pedra escura que oscila no peito do sacerdote. Fecho os olhos feridos e os abro ao ouvir a voz de um homem que chora.

O bálsamo, o espelho, a morte. A esse que caminha em minha direção empunhando um punhal de obsidiana eu grito que não, que não é assim que se abate um fidalgo castelhano. Digo a esse sacerdote que não é assim que se abre o peito de um capitão castelhano, com um só talho rasgado em bruto golpe; que não é assim que se entrega seu coração pulsante ao sol e aos deuses assassinos à espreita desde o dia em que nos entregamos à conquista cristã, para o imperador espanhol, das terras que são parte destes domínios astecas das Índias Ocidentais.

Mustafa Yasbek. Obsidiana. In: YASBEK, Mustafa. (Org.). Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 139, 141-145.

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