"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O legado da civilização mongólica

Gengis Khan e emissários chineses, Sayf al-Vâhidî. Hérât

Contrastando com os impiedosos massacres dos inimigos, deve-se apontar, desde logo, um marcante legado dos mongóis a Pax Mongolica. Esta Pax possibilitou, com relativa segurança, o desenvolvimento de atividades mercantis do Oriente ao Ocidente através de regiões e povos os mais diversos. Com os viajantes e com as mercadorias seguem também as ideias e invenções. A presença de mercadores venezianos em Pequim, de emissários mongóis em Bordeaux e Northampton, de cônsules genoveses em Tabriz, de artesãos franceses em Caracórum, de agentes fiscais árabes na China "são uma prova de que o mundo do século XIII estava-se contraindo. Neste sentido, o livro de Marco Pólo era algo mais que um catálogo de maravilhas: simbolizava o amanhecer de uma nova era." Observe-se que, ao lado das rotas continentais que correspondiam à antiga rota da seda, os mongóis reabriram a via marítima, a rota das especiarias. Grousset insiste na importância das rotas mundiais mantidas pelos mongóis: "A reunião da China, do Turquestão, da Pérsia e da Rússia em um imenso império regido por um yassaq severo, sob princípios atentos à segurança das caravanas e tolerantes para com todos os cultos, reabria por terra e por mar as rotas mundiais obstruídas desde o final da Antiguidade."

Viajantes e missionários que, usufruindo da Pax Mongólica, percorreram com segurança a Ásia e registraram o que viram, deixaram uma notável contribuição que iria frutificar nas concepções e atuações dos intrépidos navegantes lusitanos e espanhóis que marcaram com os Descobrimentos o início dos tempos modernos.

Hambly chama a atenção para o novo conceito de imperium surgido com a vida e as conquistas de Gengis-Khan e que cativou a imaginação dos homens, embora a impressão inicial ante o fenômeno fosse de terror. A lembrança desse império "ia ser tão penetrante e tão desafiante para as gerações posteriores como a lembrança do reich de Carlos Magno o foi para a Europa Medieval." "Jamais império tão vasto fora construído; e jamais a teoria do império universal tinha sido formulada com tanta força."

Podemos aferir a profunda impressão que a grandiosidade do império mongol causou na posteridade, especialmente no continente asiático, pelo fato de que "depois da queda do Império Mongol todos os chefes da Ásia Central procuravam, se pudessem, legitimar seu mandato proclamando-se descendentes de Gengis-Khan..."

Gernet aponta as diversas contribuições que da Ásia Oriental chegaram à Europa Medieval e cuja transmissão foram favorecidas pelas cruzadas dos séculos XII e XIII e pela expansão do Império Mongol nos séculos XIII e XIV: "A simples enumeração dos contributos da Ásia Oriental para a Europa Medieval nesta época - influências diretas ou invenções sugeridas pelas técnicas chinesas - basta para revelar a sua importância." 

Miquel lembra o legado que o Islam recebeu da Ásia Central e da China e que acrescentou às heranças iranianas: "somente alguns exemplos: mongol, o hábito de considerar o território como patrimônio teoricamente coletivo e indiviso do clã-Estado; mongol, a eleição do chefe pela assembleia dos príncipes; mongóis, certos atributos ou sinais exteriores do poder..."

Um legado interessante dos mongóis situa-se no campo da escrita: o alfabeto mongol, supra-estudado, encontra-se na origem do alfabeto mandchu. Février sublina: "o aspecto exterior da escrita mandchu é extremamente próxima do aspecto da escrita mongol." Diga-se de passagem que o alfabeto mandchu foi elaborado sob a orientação do imperador mandchu Nurhaci (1599).

A escrita kalmuk, criada em 1648 para uso dos kalmuks estabelecidos na Rússia, tem também sua inspiração no antigo alfabeto mongol.

[...] a ocupação mongol da China deixou o antigo império extremamente enfraquecido e com sérios problemas internos. Os mongóis não afetaram a milenar e avançada civilização chinesa: ao contrário, reforçaram velhas tradições alimentando uma xenofobia latente. A instalação da dinastia Ming implicou um esforço no sentido de apagar o hiato da dominação mongólica e ligar a nova China ao mais remoto passado nacional "elaborando uma civilização essencialmente tradicionalista." Note-se, contudo, a proteção ao budismo por Hong-wu que, lembrando-se do tempo em que vivera como bonzo num mosteiro, "não atendeu aos desejos dos letrados confucianos..."

As civilizações do Extremo Oriente, em virtude da queda do Império Mongol, isolar-se-iam num hermetismo multissecular, cortando as relações com o Ocidente. "Os europeus só reatariam tal contato muitas gerações mais tarde, na aurora do século XVI, com os périplos dos navegadores portugueses. Da grande aventura mongólica sobravam apenas lembranças aviltantes para a nova China, mas em nossos museus ficaram seus admiráveis desenhos de cavaleiros e animais, onde se aliaram, por um instante, a graça chinesa e o realismo mongólico."

GIORDANI, Mário Curtis. História da Ásia anterior aos descobrimentos. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 224-26.

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