"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 13 de dezembro de 2014

Cotidiano das mulheres e sexualidade lisboeta na época dos Descobrimentos

Grupo de mulheres, Lovis Corinth

As mulheres portuguesas eram tidas pelos estrangeiros como as mais belas da Europa. Isso, é claro, para os padrões da época, nada semelhantes àqueles seguidos pelas esqueléticas top models de nossos dias. As mais bonitas eram aquelas mais “cheias”, de belos olhos castanhos, grandes e vivazes. Tinham a pele muito branca, pois andavam com o corpo todo coberto, inclusive a cabeça, protegida por um lenço, compondo um manto que ocultava o rosto sob sombras. Era considerado sinal de paquera uma mulher mostrar a face para um transeunte.

As damas da sociedade nunca andavam desacompanhadas pelas ruas. Saíam, comumente, em liteira, seguidas por um escudeiro e um cortejo de criadas e filhas, a pé. Apenas os homens, e de posição, podiam andar a cavalo pela cidade, algo regulamentado por decreto régio. Alguns fidalgos optavam por se deslocar sentados, em cadeiras carregadas por escravos.

A despeito de as mulheres casadas portuguesas serem tidas como extremamente fiéis no matrimônio, conseguir a companhia de uma senhora casada não era difícil, num país em que os esposos estavam, constantemente, viajando. Porém, havia o risco de o casal “em pecado” ser pego de surpresa pelo confessor da senhora, ou pelo próprio marido traído, já que o retorno do cônjuge era sempre imprevisível. Aqueles que não arriscavam levar a esposa consigo entregavam-na à vigilância de um pároco de confiança. Também não faltavam padrecos a se aproveitar da ocasião para liberar a libido com suas protegidas.

Em qualquer caso, o risco maior era assumido pela mulher, pois, em se tratando de adultério ou estupro, a legislação impedia a punição dos implicados se eles fossem fidalgos. Quanto aos marujos, no máximo, levariam algumas chicotadas em praça pública. Já a esposa podia sofrer os maiores abusos, sem que o marido fosse penalizado.

O medo da traição e os constantes casos, em que estiveram implicados nobres, fizeram com que o homem português se tornasse muito possessivo, deflagrando cenas de ciúmes contra as mais castas senhoras. Tornaram-se célebres vários casos de violência doméstica, ocorridos em Portugal entre os séculos XVI e XVII. Em certa ocasião, uma mulher teve a cabeça pregada ao assoalho, só por ter acenado ao cumprimento de um estrangeiro que passava, em uma procissão, defronte à janela de sua casa.

Justamente para evitar constrangimentos e a possibilidade de a amante ser martirizada pelo marido traído, muitos homens optavam por visitar os conventos, onde o trânsito era facilitado por um título de nobreza. Belas jovens esperavam ansiosas por um amante que pudesse lhes ensinar os prazeres da carne, pois haviam sido confinadas pelas famílias em ordens religiosas, contra sua vontade, como forma de evitar a divisão de bens da família, por ocasião do pagamento do dote devido a um futuro marido, ou para dar prestígio político a seus pais.

Rapto de mulheres, Lovis Corinth

Impedidos de participar do festim proporcionado pelos conventos, os marujos, em Lisboa, tinham poucas oportunidades de praticar os estupros coletivos que estavam acostumados a infligir, a bordo dos navios, a mulheres e garotos embarcados. Não obstante, em noites escuras, quando a lua estava oculta, as sombras lhes permitiam raptar e violentar mulheres humildes, principalmente ciganas. Algumas chegavam a ser carregadas à força para dentro dos navios, a fim de satisfazer o apetite sexual da marujada. Raptadas, não tinham escolha a não ser acompanhar seus carrascos em sua jornada pelos mares.


PESTANA, Fábio Ramos. Por mares nunca dantes navegados: a aventura dos Descobrimentos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 46-48.

Nenhum comentário:

Postar um comentário