"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

As transformações da intimidade no Brasil

Messalina, Henrique Bernardellli

Entre os anos 60 e 70 eclodiu o fruto tão lentamente amadurecido: a chamada “revolução sexual”. A liberação significou a busca da realização no plano pessoal e a consciência de que “problemas sexuais” não teriam lugar num mundo “normal”. Ao defender a ideia do “direito ao prazer”, os pais da época fabricaram um tipo de sofrimento: o que nascia da ausência do prazer. Ao mesmo tempo, tinha início a democratização da beleza – graças à multiplicação de produtos, academias de body building, consultórios de cirurgia plástica, etc. -, fato que tanto levou à busca do bem-estar quanto às tensões e frustrações por não encontrar. Junto, mas, lentamente, forjava-se a intolerância à doença, à fragilização dos corpos e ao envelhecimento. Sexualidade em dia e saúde davam-se as mãos. O “direito ao prazer” tornou-se norma. E norma cada vez mais interiorizada. Apenas conformando-se a essa regra seria possível sentir-se feliz, alegre e saudável.

Nessa história, um novo ato abriu-se com o desembarque da pílula anticoncepcional no Brasil. Livres da sífilis e ainda longe da aids , os jovens podiam experimentar de tudo. O rock and roll, feito sobre e para adolescentes, introduzia a agenda dos tempos: férias, escola, carros, velocidade e, o mais importante, amor! A batida pesada, a sonoridade e as letras indicavam a rebeldia frente aos valores e à autoridade do mundo adulto. Um desejo sem limite de experimentar a vida hippie e os cabelos compridos se estabeleciam entre nós. As músicas dos Stones e Bob Dylan exportavam, mundo afora, a ideia de paz, sexo livre e drogas como libertação da mente. Os países protestantes – EUA, Inglaterra e Holanda – consolidavam uma desenvoltura erótica, antes desconhecida. Tudo isso junto não causou exatamente um milagres, mas, somado a outras transformações econômicas e políticas, ajudou a empurrar barreiras.

Nas capitais e nos meios estudantis, os jovens escapavam das malhas apertadas das redes familiares. Encontros multiplicavam-se em torno de festas, festivais de música, atividades esportivas, escolas e universidades, cinemas. Os palavrões, antes proibidos, invadiram a cena, inclusive dos teatros. E o alastramento de boates e clubes noturnos deixava moças e rapazes cada vez mais soltos. Saber dançar tornou-se o passaporte para o amor. “Pode vir quente que eu estou fervendo”, na voz do “Tremendão” Erasmo Carlos e “Gostosa”, na das Frenéticas (“sei que eu sou bonita e gostosa...”), representavam tentativas de adaptação a um mundo novo e esforçadamente rebelde. [...]

Por influência dos meios de comunicação e, sobretudo, da televisão, também o vocabulário passou a evitar eufemismos. Embora nos anos 60 ainda se utilizasse uma linguagem neutra e distante para falar de sexo – mencionavam-se, entre dentes, “relações” e “genitais” -, devagarinho se caminhou para “coito”, “orgasmo” e companhia. Os adolescentes ainda eram “poupados” pelos adultos de informações mais diretas.

As relações no cotidiano dos casais começaram a mudar. Carícias se generalizavam e o beijo mais profundo – o beijo de língua ou french Kiss -, antes escandaloso e mesmo considerado um atentado ao pudor, passava a ser sinônimo de paixão. Na cama, novidades. A sexualidade bucal, graças aos avanços da higiene íntima, se estendeu a outras partes do corpo. As preliminares ficaram mais longas. A limpeza do corpo e o hedonismo alimentavam carinhos antes inexistentes. Todo corpo a corpo amoroso tornava-se possível. No quarto, a maior parte das pessoas ficava nua. Mas no escuro. Amar ainda não era se abandonar. É bom não esquecer que os adultos dos anos 60 foram educados por pais extremamente conservadores.

Mas era o início do fim dos amores que tinham que parar no último estágio: “quero me casar virgem!”. Deixava-se para trás a “meia-virgem”, aquela na qual as carícias sexuais acabavam “na portinha”. Na moda, a minissaia despia as coxas. Lia-se Wilhelm Reich, segundo quem o nazismo e o stalinismo teriam nascido da falta de orgasmos. A ideia de que os casais, além de amar, deviam ser sexualmente equilibrados começava a ser discutida por alguns “pra frente”. Era o início do direito ao prazer para todos, sem que as mulheres fossem penalizadas ao manifestar seu interesse por alguém.

Elas começavam a poder escolher entre desobedecer às normas sociais, parentais e familiares. Ficava longe o tempo em que os maridos davam ordens às esposas, como se fossem seus donos. Um marido violento não era mais o dono de ninguém, mas apenas um homem bruto. Uma vez acabado o amor, muitos casais buscavam a separação. Outros faziam o mais fácil: tinham um “caso”. E, desse ponto de vista, o adultério feminino era uma saída possível para quem não ousasse romper a aliança.

No pano de fundo, o golpe militar de 1964 e um conjunto de fatos que aceleraram mudanças. Uma política de desenvolvimento foi implementada e pôs o país na rota do “milagre econômico”. Na esteira do progresso, expandiram-se as cidades. Atraídos pelo crescimento da construção civil, migrantes nordestinos provocaram a concentração e a formação de um cinturão de miséria nos grandes centros do Sudeste brasileiro. A classe média deparou-se com uma grande quantidade de novos bens de consumo e com a possibilidade de financiamento de dívidas. A utilização a televisão foi fundamental nesse processo. O Brasil emergira subitamente como um dos mais dinâmicos mercados de TV do terceiro mundo. As compras pelo crediário e as facilidades de aquisição de aparelhos, no período, expandiram o número de domicílios com receptores – em 1960, 9,5% das residências urbanas tinham TV; em 1970, essa proporção passou para 40%. Grandes investimentos foram feitos para implantar as bases de um sistema amplo.

Em meio a isso, os motéis multiplicaram-se. Pornoshops começaram a abrir, discretamente, suas portas. As capas de discos passaram a ser ilustradas com cantoras conhecidas em trajes sugestivos ou de biquíni. O videocassete logo introduziria o aluguel de fitas pornôs, agora assistidas em domicílio. A música popular introduziu versos ao mesmo tempo delicados e libertários, resumindo o espírito da época. Quem não lembra a voz de Ivan Lins cantando a amada “Vitoriosa por não ter / vergonha de aprender como se goza”. Ou o bolero “Latin lover”, de João Bosco, cheio de insinuações murmuradas com sensualidade: “Mas me lembro de uma noite, sua mãe tinha saído / Me falaste de um sinal adquirido / Numa queda de patins em Paquetá / - mostra! Doeu? Ainda dói? A voz mais rouca / E os beijos / Cometas invadindo o céu da boca”. Ou a queixa da mulher mal amada: “Na cama és mocho / Tira as mãos de mim”, em canção de Chico Buarque.

Mas também foram anos de massiva propaganda, de falta de liberdade, de censura e perseguições. Intelectuais, estudantes e artistas resistiram. Houve prisões, tortura e exílios. Foram os anos do slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” e da música de Dom e Ravel, “Esse é um país que vai pra frente”. O futebol era o grande assunto, bem como “os 90 milhões em ação”.

Foi ao longo dos anos 70, com os movimentos pela valorização das minorias que a questão da mulher começou a mudar de forma. A sexualidade deixava de ser considerada algo mágico ou misterioso que escaparia aos progressos técnicos ou à medicina. A pílula foi aceita por homens e mulheres, não só porque era confiável, mas, sobretudo, por ser confortável. O orgasmo simultâneo passou a medir a qualidade das relações e significava o reconhecimento da capacidade feminina de gozar igual aos homens. Música, literatura e cinema exibiam a intimidade dos casais, democratizando informações: “nos lençóis da cama... travesseiros pelo chão”, cantava Roberto Carlos. Revistas de grande tiragem exploravam questões sexuais, valorizando corpos idealizados, com uma mensagem: “sejam livres”, enquanto nos artigos de fundo seguia-se valorizando o sentimento e a o amor. Já a publicidade erotizava comportamentos para vender qualquer produto. Tudo isso não seria possível sem o poder dos meios de comunicação modernos e uma cultura de massa, capaz de difundir modelos e representações sexuais.

Entre 1979 e 1985, aumentou a mobilização dos diferentes setores da sociedade exigindo a redemocratização do país, inaugurando novos conflitos e sacudindo o imobilismo das representações de classe.

E, aos trancos e barrancos, discutia-se um novo modelo de feminilidade, mas também, de masculinidade.


PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p. 175-179.

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