"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O problema do carro de guerra no Oriente Próximo Asiático

Admite-se com frequência que o feudo aparece "nas sociedades onde se conjugam uma economia insuficientemente monetária e um armamento militar oneroso". O soberano retribui o serviço militar mediante a concessão do único capital valioso, a terra. Eis o que teria ocorrido no Oriente, no momento em que o uso do carro de combate se generalizava.


Carro de guerra sumério de quatro rodas. Estandarte de Ur (Lado da Guerra, detalhe).

Antes do século XVII, o carro desempenhava, nas batalhas, um papel apenas secundário. Protegido por grande anteparo frontal e montado sobre quatro rodas maciças, o carro era pesado demais para prestar-se a evoluções táticas. Seu manejo complicava-se tanto mais quanto os animais de tiro parecem ter sido onagros, animais espantadiços, dificilmente domesticáveis, aos quais o processo de atrelagem - um jugo apoiado no garrote - suprimia grande parte da força de tração. Daí que o carro quase só fosse empregado na perseguição do inimigo, não para a ruptura da frente adversária.

A situação modificou-se radicalmente quando se introduziu certo número de melhorias técnicas: a caixa, mais leve e montada sobre um eixo ao qual se fixaram duas rodas de raios, foi atrelada a dois cavalos por peitorais mais simples. O carro tornava-se, assim, um instrumento de manejo flexível, cujas vantagens táticas foram imediatamente percebidas. Os progressos fundamentais, efetuados na Ásia Menor e em território mitanita, difundiram-se por todo o Oriente Próximo, sem que se possam precisar as contribuições respectivas dos diferentes povos.

Se a generalização desse material dispendioso constituísse explicação para a formação dos feudos, ter-se-ia de adtmitir que ficava por conta dos combatentes que o utilizavam: precisamente para atender às despesas de equipamento é que se lhes outorgariam terras. Ora, tal não sucedia, já que os carros se encontravam sob a custódia da administração central.


Carro de guerra assírio de duas rodas. A captura da cidade de Astartu, pelo rei assírio Tiglath-Pileser III, ca. 730-727 a.C., retratados em um relevo de palácio.

O fato está claramente atestado em Nuzi, na época da ocupação mitanita. Os carros eram entregues a título de foro (ishkaru) pelas populações das localidades vizinhas, aos funcionários do poder central, que os depositavam no arsenal. Esse edifício, encostado ao palácio, era dirigido pelo shãkin biti, intendente da casa real. Tais disposições perpetuaram-se na Assíria, depois que alcançou a independência. Um texto de Tell Billa (Bi, 25) revela que as entregas de carros, ou de peças desses carros, no caso um timão de madeira de shakkulu, sempre constavam dos ishkaru exigidos pelo palácio, sendo o hassuklu, governador de Shibaniba (Tell Billa), responsável pela sua guarda. O mesmo se verifica em território hitita: Hattusili III concedera uma carta de imunidade ao templo de Ishtar de Samuha, dispensando-o do serviço (sahann) e das corvéias (luzzi), normalmente devidos ao Estado; ora, entre os encargos citados figuram entregas de carneiros, palha, cevada, forragem, cavalos de guerra, acessórios, além de peças de carros, os shakkulu, certamente timões, e bubutu, que seriam os taipais laterais da caixa. Todos esses fornecimentos visivelmente destinados ao equipamento e à intendência dos exércitos estavam confiados à guarda do comandante da marca (auriyas = bél madgalti). Arquivos oficiais nos informam sobre os maryannu de Ugarit, guerreiros que, via de regra, se encontravam subordinados a um funcionário do palácio, o "mestre dos carros" (akil narkabti), e talvez, em certos casos, diretamente ao rei. Ainda que este lhes concedesse terras, o setor dos carros estava, com toda evidência, sob responsabilidade da administração central. 


Carro de guerra hitita de duas rodas.

Por outro lado, a carta de Hattusili III, tanto quanto as tábulas administrativas de Nuzi, demonstram que nem só os combatentes participavam das despesas com o equipamento militar. Os templos e as populações rurais também estavam sujeitos a elas, detalhe confirmado pelos arquivos assírios de Tell Billa, que contêm listas de localidades (álu) e domínio (ái dunnu) obrigados a fornecer ao governador da região contingentes de homens, carneiros, lã e cereal. Era o conjunto da circunscrição do hassuhlu que participava da preparação dos exércitos assírios. Todos esses fatos traduzem a mesma realidade: os cuidados do equipamento militar não eram deixados à iniciativa individual; eram encargo do governo. Portanto, não teria cabimento estabelecer uma relação de causa e efeito entre as despesas de armamento e as concessões de terras efetuadas pelos soberanos. Estas visavam a um objetivo mais geral.

GARELLI, Paul. O Oriente Próximo asiático: das origens às invasões dos povos do mar. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1982. p. 319-321.

NOTA: O texto "O problema do carro de guerra no Oriente Próximo Asiático" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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