"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Influência da Europa sobre a América

No fim do século XVII, a transformação da América pela Europa já era sensível. Os europeus haviam introduzido no Novo Mundo animais e plantas até então desconhecidos: pombos, galinhas, patos, vacas, cavalos, asnos, mulos, cabras, ovelhas, trigo, centeio, arroz, laranjeira, limoeiro, oliveira, vinha. Tinham transmitido o conhecimento de suas técnicas, especialmente a roda e os derivados, todos os instrumentos e mecanismos baseados no movimento circular, uma das bases da civilização do Velho Mundo, e a abóbada, condição das principais construções européias. O aspecto geográfico de muitas regiões americanas já se transformara. Não obstante, as lavouras, os rebanhos, os edifícios e as estradas dos europeus estavam ainda mal disseminados em faixas costeiras, em zonas restritas ou linhas dispersas. O homem branco limitara-se a encetar este gigantesco continente.

O homem branco levara para a América as instituições de seu torrão europeu. Mas, num meio e em circunstâncias novas, tais instituições transformaram-se, dando origem a sociedades diferentes da mãe-pátria, a verdadeiras nações que possuíam todas, em diversas gradações, seus costumes, maneiras próprias de acionar instituições aparentemente análogas às de suas regiões de origem, seus interesses, suas preocupações, um desejo de levar vida própria e de regular por si mesmas seus negócios, um espírito de particularismo e autonomia. Mas tais nações, segundo suas origens e circunstâncias de evolução, diferiam profundamente umas das outras. Desde as colônias espanholas, levadas pela recessão das correntes comerciais a voltar para um regime dominial, senhorial e vassálico, mais próximo da Idade Média europeia do que da metrópole no século XVII, até as colônias inglesas, onde as diversidades religiosas, a livre iniciativa e o grande comércio criaram todas as formas de burguesia, cadinho de experiências políticas que rapidamente ultrapassam as da metrópole, representativos e parlamentares do futuro, passando pelas colônias francesas e portuguesas, em estágios intermediários, estende-se um magnífico campo de pesquisa e reflexões experimentais para o historiador empenhado em compreender as condições de existência dos diferentes regimes políticos.

Incomparável é também o campo de pesquisa aberto pelo contato destas sociedades brancas com os índios e os negros. De fato, nenhuma sociedade branca teve êxito na assimilação e talvez nenhuma tenha verdadeiramente tentado. Negros e índios encontravam-se em níveis de civilização que os europeus haviam sucessivamente atingido na Europa. O problema consistia em levá-los, em algumas décadas, através de todos os estágios percorridos pelos europeus em mais de trinta séculos: e não houve solução para isto. Um resultado do contato das sociedades brancas mais evoluídas com as sociedades índias que o eram muito menos foi a desorganização e a desagregação destas, a redução do número ou o desaparecimento de seus membros. Outro foi a transferência de considerável número de negros da África, a constituição de uma raça inferior, escrava ou desprezada. Os negros puros passaram por incapazes de assimilar a civilização européia, por mansos e sem iniciativa. Aos mestiços, numerosíssimos, concedeu-se uma verdadeira inteligência, mas uma espécie de instabilidade mental. Um resultado considerável foi a transformação das sociedades europeias da América espanhola, portuguesa, francesa, inglesa nas Antilhas e na parte tropical da América do Norte, quer pelos cruzamentos e pelo afluxo de sangue novo, quer pela sua situação de senhores no meio de escravos, ou de senhores chefiando servos. Os hábitos novos daí resultantes e a influência dos povos de cor sobre seus senhores brancos constituem assunto ainda pouco estudado.


A cativa, Eanger Irving Couse

Já esteve em moda opor as colonizações espanhola e francesa, humanas, preocupadas com o indígena, e o seu progresso, o seu porvir, à colonização inglesa, brutal, orgulhosa destruidora do índio. É certo que o governo inglês não demonstrou o mesmo cuidado de assimilação que os governos espanhol e francês. É certo que os colonos ingleses mostraram ser menos aptos a abandonar seus hábitos de espírito e seu gênero de vida, a compreender os indígenas e possuir menos vontade de tentar algo neste sentido, menos facilidade de se unir pelo casamento às mulheres indígenas, uma repugnância em viver a vida dos índios, mais altivez e maior cupidez no lucro. O espírito puritano só complicava as coisas. Thomas Morton, fundador de Mont-Joyeux, foi expulso do Massachusetts porque seus colonos e ele se entregavam, juntamente com os índios, a bebedeiras e a danças endiabradas, à moda índia. O puritanismo viu facilmente nos índios representantes dos Madianitas e Amalecitas dignos de extermínio e no feliz usurpador das terras índias um eleito de Deus. Os franceses, portugueses, espanhóis conviviam de melhor boa vontade com os indígenas. A maleabilidade dos franceses, sua capacidade de adotar os costumes dos índios e para se tornarem bem-vindos em seu meio ficaram proverbiais.

Contudo, mais talvez do que do caráter e da religião, a atitude dos diferentes colonizadores dependeu das circunstâncias e do modo de produção. Nas Antilhas, frente aos negros, os franceses mostraram-se tão racistas quanto os ingleses, embora os negros, via de regra, gozassem de melhor sorte nas colônias francesas. Nas estepes mexicanas, os espanhóis trataram os Chichimecas de maneira semelhante à que os pioneiros ingleses adotaram com os Abenakis ou os Creeks e, mais tarde, os Sioux. No Canadá, os franceses entendiam-se com os índios e, em certa medida, uniam-se às suas filhas, mas os brancos constituíam um punhado apenas e necessitavam dos indígenas. Como teriam procedido, se se vissem, como no Massachusetts, por volta de 1670, em número de 80.000 contra 12.000 índios, com grande necessidade de terras e com os territórios de percurso dos indígenas encravados no meio das lavouras dos brancos? Os ingleses, relativamente numerosos, pouco a pouco repeliram e destruíram os indígenas, tanto mediante o desbastamento do território de percurso onde fugiam os animais de caça, como pela guerra. Os defensores da civilização agrícola multiplicaram-se e privaram de meios de existência, de espaço vital, os praticantes da civilização seminômade dos caçadores, destinados a desaparecerem paulatinamente. Mas os espanhóis, e mesmo os franceses, em geral, subordinaram mestiços e índios a uma sociedade branca dominante e, por outro lado, justapuseram no espaço estas sociedades estratificadas de predominância branca, com tribos indígenas assujeitadas ou protegidas, que permaneceram mais ou menos à parte. Os mestiços subsistiram como indivíduos de segunda categoria, batedores de floresta ou guardas de haciendas ou estâncias. A verdadeira assimilação, a que consistira, para os índios de puro sangue, na adoção de costumes, línguas, trajes, práticas, religião e espírito europeu, reduziu-se a exceções individuais. O problema mantêm-se de pé, para o historiador: a assimilação, desejada a distância pelos homens de gabinete por razões de princípio, crença cristã na igualdade fundamental dos homens, interesse nacional e monárquico, não foi levada avante seriamente, de fato, pelos coloniais. Seria possível?


MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII: a Europa e o mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 138-141. (História geral das civilizações, v. 10)

NOTA: O texto "Influência da Europa sobre a América" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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