"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Quantos eram os índios do Brasil pré-colombiano

Ilustração de Theodor de Bry para a obra Brevíssima destruição das Índias de Bartolomeu de las Casas

Dificuldades metodológicas e a precariedade de dados históricos impossibilitam uma uniformidade de opiniões quanto ao montante da população aborígene na época da conquista da América. A avaliação mais baixa dos chamados estudos "clássicos" é de 8 milhões e 400 mil índios e, a mais alta, de 40 a 50 milhões, para toda a América. Se aceitarmos essa última estimativa, verificaremos que, em quatro séculos, a população nativa americana foi reduzida a um oitavo do montante original. Estudos recentes, porém, mostram que o descenso foi muito mais drástico, devido principalmente à incidência de doenças antes desconhecidos (varíola, gripe, sarampo, tuberculose, sífilis etc) e ao rigor da escravidão.

A maior crítica dos estudiosos de demografia histórica americana às avaliações antigas é a de que elas não levaram em conta testemunhos, como o do padres Bartolomeu de las Casas, que responsabilizou os espanhóis pelo genocídio de 40 milhões de índios em apenas sessenta anos.

Outra restrição feita pelos antropólogos modernos é não terem os chamados "clássicos" levado em consideração os efeitos das epidemias sobre povos sem defesas orgânicas contra nossos vírus e bacilos. A propósito, vale citar o depoimento do padre Manuel da Nóbrega:

"Uma coisa nos acontecia que muito nos maravilha a princípio e foi que quase todos os que batizamos, caíram doentes, quais do ventre, quais dos olhos, quais de apostema; e tiveram ocasião os seus feiticeiros de dizer que lhes dávamos a doença com a água do batismo e, com a doutrina, a morte."

É preciso lembrar que o aperfeiçoamento da vacina contra a varíola só deu por volta de 1800.

No caso do Brasil, existem dados de observação direta, por parte então de etnólogos, que encontraram tribos virgens de contato com o branco. Inúmeros exemplos de depopulação proveniente de epidemias que atacavam grupos indígenas são relatados por Darcy Ribeiro em Os índios e a civilização. O efeito sobre a população indígena das doenças levadas pelos civilizados, que ainda ocorre, pode, portanto, ser adotado como outro critério de avaliação da população original. Esse fenômeno é agravado pelo fato de, simultaneamente, decair a taxa de natalidade. Isto é, o circuito de contágio que se produz, quando dos primeiros contatos entre populações indígenas e não indígenas, traz vários problemas. Além de causar enorme mortandade, não só por efeito das doenças como por desorganizar a vida tribal (todos os seus membros sendo atingidos, não há ninguém para buscar água, lenha e os produtos da roça), afeta também o índice de natalidade que, em casos extremos, cai a zero, durante anos seguintes.


Índios brasileiros escravizados no século XIX. Fotógrafo desconhecido

Calculando o declínio da população segundo esse critério, Dobyns chega à conclusão de que, por efeito de moléstias e outros agentes deletérios, a depopulação do México Central deve ter sido à razão de 20 a 1. Isto é, onde havia vinte indivíduos na época da conquista, restou um só, 130 anos depois. Em algumas regiões do antigo império Inca, a queda da população em uma geração chegou à taxa de 25 a 1 e até mesmo de 100 a 1. De 2 milhões de índios, em 1492, sobraram 20 mil, em 1685, na região costeira entre Lima e Paita, no Peru.

Dados etnográficos sobre a depopulação de índios na Terra do Fogo mostram que, no caso dos Ona, por exemplo, a taxa de mortalidade foi de 50 a 1 entre 1870 e 1950, isto é, em apenas oitenta anos. A dizimação do subgrupo Nambiwára, Sabané, foi ainda mais drástica, porque ocorrida em muito menos tempo: de 20 a 1, em 22 anos.


Aldeia de caboclos em Canta Galo, Jean-Baptiste Debret

Outro exemplo do Brasil é dado por Dobyns no caso dos índios Kayapó das margens do rio Araguaia. Os padres dominicanos se estabeleceram na região em 1903 para dirimir os conflitos entre esses índios e seringueiros que penetraram em seu território. Anos mais tarde, os dominicanos estimaram a população Kaiapó em 6 a 8 mil indivíduos. Em 1918 estavam reduzidos a quinhentos índios e, em 1929, a apenas 27, num declínio de 222 a 1, que os levou à extinção. Em 1958, havia uma única sobrevivente.

[...]

Num trabalho publicado em 1972, Pierre Clastres calcula a população guarani do Brasil, do Paraguai, do Uruguai e da Argentina, de antes da conquista, tomando por base dados dos cronistas do século XVI sobre a extensão do território tribal (350 mil km²), a distância entre as aldeias (9 a 12 km) e o número médio de habitantes por aldeia (seiscentos, tomando por baixo). Clastres chega à conclusão de que, antes da chegada dos europeus, havia cerca de 1.404.000 Guarani no retângulo compreendido entre o alto rio Paraguai e a costa atlântica, com uma média de 4 habitantes por km².

Os estudos de Clastres refutam totalmente os chamados "clássicos". Assim, comparada com a estimativa de Julian H. Steward (200 mil Guarani no Brasil e no Paraguai, ou cerca de 28 habitantes por 100 km²), a retificação de Clastres sextuplica a população Guarani.

Pierre Chaunu estima a população do México, de 1519, equivalente à da França em 1789, isto é, 50 habitantes por km². Nesse raciocínio, calcula a população do continente em 80 a 100 milhões de americanos, que representam a quarta parte da humanidade do período. A título de comparação, basta dizer que Tenochititlán, a capital dos astecas, contava com 300 mil habitantes, segundo o testemunho dos cronistas da época, ao passo que Sevilha, a principal cidade espanhola do século XVI, contava com 120 mil e Lisboa, com 100 mil, dos quais 10 mil escravos e 7 mil artesãos estrangeiros.

É relevantes recordar que o mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes, de Curt Nimuendaju, elaborado em 1944 e publicado em 1982, enumera 1.400 tribos pertencentes a quarenta famílias linguísticas. A publicação do ingente esforço de Nimuendaju, baseado em sua experiência de quarenta anos de trabalho de campo e na consulta a 973 fontes bibliográficas, permitirá uma reavaliação do montante da população nativa brasileira em melhores bases.

De qualquer forma, o vulto do genocídio praticado pela conquista e colonização europeia na América, pelo contágio, muitas vezes proposital, de doenças, da brutalidade da escravidão e das condições de vida impostas aos índios, não tem paralelo em toda a história. Para justificar sua ferocidade, os europeus chegaram a negar a condição de criaturas humanas aos habitantes da América. Foi preciso que uma bula do papa Paulo III, de 9 de junho de 1537, proclamasse os índios "verdadeiros homens e livres".

O testemunho abaixo transcrito, um dos poucos que a etnologia registra, revela a iniquidade da escravidão, tal como a sentiu um asteca de Tlatelolco, México, em 1528:

"Nos puseram preço: preço de jovem, preço de sacerdote,
de criança e de donzela.
Basta: o preço de um pobre
era um punhado de milho.
Dez tortas podres era o nosso preço."

RIBEIRO, Berta. O índio na história do Brasil. São Paulo: Global, 2011. p. 30-33.

NOTA: O texto "Quantos eram os índios do Brasil pré-colombiano" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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