"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 24 de junho de 2014

Ditadura no Brasil: Anistia ilegal e ilegítima e o legado da ditadura

Ditadura militar: resistência

De todos os países latino-americanos que passaram pela experiência de uma ditadura militar nas últimas décadas, o Brasil se destaca no direito internacional por sua situação catastrófica.

Enquanto Argentina, Chile e Uruguai passaram cada um à sua maneira, por processos profundos de julgamento dos responsáveis por crimes contra a humanidade perpetrados por funcionários de Estado, o Brasil brilha por nunca ter colocado um torturador no banco dos réus. Enquanto vários países fizeram revisões de suas leis e instituições, o Brasil conseguiu preservar algumas das mais brutais heranças jurídico-institucionais da ditadura militar.

[...]

A tentativa de apagar aos poucos a ditadura da história brasileira só pôde ocorrer porque os militares procuraram, desde o início, criar uma forma renovada de totalitarismo. Ele consistiu em não apelar para um típico regime na base da lei e da ordem, com suspensão total de todas as liberdades individuais, bloqueio completo da produção cultural, eliminação sistemática de todo e qualquer opositor e anulação soberana da integralidade das estruturas político-partidárias. Daí a impressão de que, comparada a países como Argentina e Chile, a ditadura brasileira teria sido branda, inclusive com menos mortos e desaparecidos.

É verdade que em plena ditadura era possível levar para casa discos com canções de protesto, comprar livros de Karl Marx nas bancas e nas livrarias, votar no partido de oposição. No entanto, devemos lembrar que o totalitarismo está ligado à generalização de situações de exceção nas quais a lei pode ser, a qualquer momento, suspensa, pois há sempre uma segunda lei não dita que pode interferir e se fazer sentir. Posso comprar livros de Marx e levá-los para casa, mas, a qualquer momento, por razões as mais diversas possíveis, posso ser enquadrado por isto e processado pela Lei de Segurança Nacional. Generaliza-se uma situação na qual nunca sei com clareza se estou dentro ou fora da lei, cabendo à atitude discricionária do poder decidir minha real posição. [...] Aceita-se a existência de um Congresso Nacional com deputados de oposição, mas, caso suas decisões desagradem, está sujeito a ser fechado por tempo indeterminado. A legalidade é reduzida à condição de aparência.

[...] Dando a impressão de legalidade e apoiando-se em uma vergonhosa lei da anistia que vai na contramão do direito internacional – que entende serem imprescritíveis os crimes contra a humanidade, e objetos de uma jurisdição que se sobrepõe às leis nacionais – permitiu-se que todas as instituições escapassem de exigências e depuração. Para ficar em um só exemplo, as Polícias Militares conseguiram a proeza de não afastar de seus quadros a maioria dos envolvidos em tortura sistemática contra presos políticos. Como resultado, o Brasil é atualmente o único país latino-americano onde o número de casos de tortura aumentou em relação àqueles ocorridos no regime militar [...]. Poderíamos insistir que nenhuma empresa que apoiou ou financiou o golpe e a ditadura foi obrigada a fazer sequer um mea culpa público. Por mais paradoxo que possa parecer, a única a fazê-lo foram as Organizações Globo. Desta forma, a sociedade não sinaliza repulsa em relação à conspiração contra o funcionamento de sua democracia.

Mesmo nossas leis constitucionais continuaram permeadas pelo legado ditatorial. O Brasil foi capaz de legalizar o golpe de Estado em sua Constituição de 1988. No artigo 142, as Forças Armadas são descritas como “garantidoras dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Ou seja, poderemos ver situações nas quais, por exemplo, o presidente do Senado pede a intervenção militar em garantia da lei (mas qual?, sob qual interpretação?) e da ordem (social? moral? jurídica?) para legalizar constitucionalmente ações arbitrárias.

A incapacidade de construir uma repulsa coletiva visível à ditadura é a maior responsável pela perpetuação da lei da anistia. Valeria a pena insistir no absurdo que é a leitura de tal lei, como se fosse resultado de ampla negociação com setores da sociedade civil e da oposição.

A insistência em conservar essa leitura é ilegal sob dois aspectos. Primeiro, há um conflito de soberania. O Brasil, ao reconhecer a existência do conceito de “crime contra a humanidade” [...] abriu mão de parte de sua soberania jurídica em prol de uma ideia substantiva de universalidade de direitos. Os acordos políticos nacionais não podem estar acima da defesa incondicional dos cidadãos contra Estados que torturam, seqüestram, assassinam opositores, escondem cadáveres e estupram. [...]

Além disso, a lei é ilegítima em sua essência. Na verdade, não houve negociação alguma, mas pura e simples imposição das condições a partir das quais os militares esperavam se autoanistiar. O governo de então recusou a proposta do MDB de anistia ampla, geral e irrestrita, tal como a sociedade civil organizada exigia, e enviou para o Congresso Nacional o seu próprio projeto.

[...]

O texto da Lei da Anistia era claro a respeito de seus limites. No segundo parágrafo do seu primeiro artigo, lê-se: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, de assalto, de seqüestro e atentado pessoal”. Por isso, a maioria dos presos políticos não foi solta em 1979, ano da promulgação da lei. Eles permaneceram na cadeia e só foram liberados por diminuição de penas. Os únicos anistiados, contra a letra da lei que eles próprios aprovaram, foram os militares que praticaram terrorismo de Estado, seqüestro, estupro, ocultação de cadáver e assassinato.

A Lei de Anistia consegue a proeza de ser, ao mesmo tempo, ilegítima na sua origem e desrespeitada exatamente pelos que a impuseram. Um belo exemplo do tipo de singularidade lógica que a ditadura militar nos legou.

Vladimir Safatle. “Como perpetuar uma ditadura”. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 9 / Nº 103 / 2014. p. 36-39.

NOTA: O texto "Ditadura no Brasil: Anistia ilegal e ilegítima e o legado da ditadura" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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