"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 19 de maio de 2014

O homem do século XVI: o conhecimento

A quermesse de São Jorge com a dança ao redor do poste, Pieter Brueghel, o Jovem

A um nível diferente do psiquismo, o homem do século XVI não possui exatamente as mesmas faculdades naturais de conhecer o mundo exterior, nem mesmo a aparelhagem mental do homem do século XX. Entretanto, sua necessidade de certeza é, talvez, ainda maior do que a nossa. Porém, por um exemplo, o da França, esclarecido por trabalhos recentes, quantos outros permanecem de nós desconhecidos.

- Os sentidos. Eles são, provavelmente, mais aguçados do que os nossos num universo em que o homem se situa, mais amiúde, num estado de alerta. A hierarquia não é a mesma de hoje (L. Febvre).

A vista, que é o nosso sentido primordial, não vem, então, senão após o ouvido e o tato. Antes da propagação do livro impresso, a leitura constitui um meio de informação menos utilizado do que a audição. Os conselheiros dos soberanos são chamados auditores e as relações quase sempre são orais. A Palavra de Deus é comunicada muito mais pelo sermão ou pela prédica do que pela leitura. Entendimento significa compreensão. O tato é o órgão da certeza. Fornece ao homem a confirmação do que ele vê. As práticas religiosas ratificaram tal confiança (imposição das mãos, toque das relíquias). Todavia, no século XVI, desenvolve-se a função da vista, época em que o uso dos vidros brancos e dos óculos dão um prolongamento à atividade do homem.

- A influência do meio natural sobre o pensamento. Devido à falta de confiança na vista, o órgão do conhecimento científico, o homem permanece orientado para o qualitativo. Nem o espaço, nem o tempo são medidos com exatidão.

As medidas do espaço são tomadas de empréstimo ao corpo humano: polegada, pé, passo, cúbito, ou ao deslocamento do homem: dia de marcha. A jornada de carruagem é a unidade de superfície mais difundida. Todas estas medidas têm um valor variável. Não existe nenhuma possibilidade de avaliar as grandes distâncias.

Depara-se a mesma imprecisão para a expressão do tempo. A duração é o tempo vivido. Não se conta em horas, mas em preces: o tempo de uma ave, de dois padres-nossos. O tempo-instante é fixado pelos incidentes metereológicos contemporâneos. A data é expressa segundo um acontecimento e com relação às festas.

A divisão do tempo é baseada na alternância do dia e da noite. A relojoaria já produziu obras estimáveis a serviços das municipalidades, mas frágeis e pouco numerosas. O começo da jornada não estava fixado com uniformidade. Situa-se, na Itália, no começo da noite. Ocorre o mesmo com o início do ano. É somente no decorrer do século XVI que se introduz a ordem na questão da data.

Na realidade, só o ritmo das estações e a alternância do dia e da noite é que contam. Os meses são expressos pelos trabalhos do campo ou, entre as pessoas de saber, pelos símbolos do zodíaco. A divisão do dia em horas equivalentes durante todos as estações mal começa a impor-se. É verdade que, vivendo embora uma vida mais curta do que a nossa, o homem do século XVI é menos apressado que o do século XX. Dia de entrevista e tempo transcorrido num trabalho são noções muito elásticas.

Em contrapartida, o homem é muito mais sensível às concomitâncias percebidas na natureza. O animismo é alimentado por uma imaginação muito concreta: demônios, íncubos, súcubos, lêmures para as pessoas de saber, duendes, diabretes para todos, são companheiros da vida cotidiana.

- A fraqueza da expressão abstrata. As línguas vivas não permitem expressar perfeitamente os conceitos. Faltam ao francês da época muitos termos abstratos. O progresso da tipografia não permitiu ainda a codificação de Villers-Cotterêts que torna o seu emprego obrigatório nos atos jurídicos (1539). Mas ele não convém de todo à ciência. É, pois, verossímil que as outras línguas europeias não estejam melhor aparelhadas.

O latim, que apresentava a vantagem de ser compreendido pelo mundo erudito da Europa, podia enriquecer-se de neologismos, mas tendo sido "feito para exprimir as tentativas de uma civilização morta há uma dúzia de séculos... seria ele capaz de acolher ideias ainda por vir?" (L. Febvre).

A expressão do quantitativo está ainda mal dividida. O cálculo, contudo, dotou-se de usos simples, mas apenas para a contabilidade comercial. O cálculo científico está embaraçado por dificuldades de expressão. Os algarismos gobar (ditos árabes), hindus de origem, não penetraram a vida corrente onde imperam sempre os algarismos romanos cuja utilização nas contas feitas no papel é de tal modo complicado, que se empregam preferentemente o tabuleiro de xadrez, o ábaco e as fichas.

- Necessidade de certeza. Será talvez por causa de todas estas debilidades que se torna imperioso a necessidade de certeza? Prisioneiro do meio natural, o homem o conhece mal. Ele desdenha a observação metódica e não vê nela senão curiosidade, mas não faz disso um dever. O homem prefere raciocinar, sem se preocupar com o valor das bases desse raciocínio.

Consciente da fragilidade de sua ação sobre a natureza, ele considera como uma experiência miraculosa tudo quanto sabe fazer, sem ousar arriscá-lo por mudanças demasiado rápidas de método. Ele situa a idade de ouro nas origens da humanidade e apóia-se na tradição, não por preguiça de espírito ou por rotina, mas por razão. Por isso os trabalhos científicos estão atulhados de citações. Entrincheira-se atrás de autoridades e discute-se, sobretudo, os desacordos. É por aí, unicamente, que o pensamento avança.

Enfim, a necessidade de certeza sacia-se nas crenças animistas que se misturam às mais evoluídas religiões. Assim se explicam, sem se admitir a dúvida, as relações entre os seres, os seres e as coisas e entre as próprias coisas. Agir sobre a natureza é descobrir o caráter dos espíritos e forçá-los a agirem. Por isso a magia é apenas uma falsa ciência.

A magia é inocente. Não ocorre o mesmo com a feitiçaria. A feitiçaria, praticada entre os cristãos, é muito mais temível. Faz-se acompanhar de perversão ou mesmo de inversão de todos os preceitos das leis divinas e naturais. Sabemos hoje que ela revela do domínio da patologia. A feitiçaria só teria para o historiador um interesse limitado se as autoridades humanas não tivessem crido nas narrativas dos feiticeiros e na realidade do sabá. A feitiçaria constitui, portanto, um elemento negativo do conhecimento que não se deveria subestimar.

Fraco domínio sobre a natureza, força da tradição, magia e feitiçaria eram, igualmente, obstáculos aos progressos da humanidade. É na Europa Ocidental que o espírito de empreendimento suscita os maiores esforços no sentido de lhes escapar.

CORVISIER, André. História moderna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 21-23.

NOTA: O texto "O homem do século XVI: o conhecimento" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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