"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 27 de março de 2014

Experiências anarquistas: a Colônia Cecília

Colônia Cecília

Na segunda metade do século XIX cresceu a imigração européia para o Brasil e outros países americanos. Os problemas socioeconômicos e políticos, existentes em diversas sociedades européias, funcionaram como fatores para a saída de milhares de cidadãos buscando melhores condições de vida em terras americanas.

A maioria desses imigrantes era constituída de camponeses e operários. Mas também havia profissionais liberais, artesãos...

Muitos dos imigrantes nasceram na Itália, um dos países onde o anarquismo levava seus adeptos a sonhar com a criação de uma nova sociedade. Uma sociedade sem propriedade privada, sem patrões, sem limitações à liberdade e onde a justiça fosse igual para todos.

Foi assim sonhando que imigrantes italianos fundaram a Colônia Cecília, nos campos de Guarapuava, no sul do estado do Paraná. Era o mês de abril do ano de 1890. Em janeiro de 1891 chegou uma segunda leva de imigrantes. A comunidade reunia, então, cerca de 300 pessoas, que acreditavam tornar realidade o que existia apenas nos livros e nas cabeças dos homens. Muitas experiências sociais vinham sendo realizadas no Novo Mundo. Além do mais, no Velho Mundo não existiam mais terras sem proprietários.

Fora D. Pedro II quem doara 300 alqueires de terras para a instalação da colônia de italianos. A monarquia, no entanto, fora suprimida no Brasil, mas a doação representava uma extensão de terras que servia como atrativo para os imigrantes.

O idealizador do projeto e responsável pela obtenção da concessão fora o agrônomo Giovanni Rossi, líder anarquista. Ele também sugerira a denominação de Colônia Cecília, inspirada em personagem de um romance que escrevera.

Ao se instalarem em terras paranaenses, os imigrantes logo ergueram um mastro, onde foi colocada a bandeira preta e vermelha. Essas cores eram o símbolo dos anarquistas e também atuariam como fator de propaganda.

A seguir, construíram suas habitações. Eram de madeira e podiam ser de dois tipos: barracões grandes, servindo de moradia coletiva, ou, então, casas menores para famílias reunindo pai, mãe e filhos.

O objetivo de todos era criar uma comunidade agrícola, fundamentada na autogestão econômica. As decisões deveriam ser aprovadas nas assembléias gerais, onde homens e mulheres teriam liberdade de expressão e de voto. Caso algum problema exigisse solução individual, esta deveria ser discutida posteriormente pela coletividade. Nas assembléias também procurava-se aprofundar o conhecimento da ideologia anarquista.

O cultivo do milho era prioritário e até construíram um moinho para produzir fubá. Plantaram árvores frutíferas, um pomar e um vinhedo. Criavam galinhas, porcos e marrecos. Compraram vacas leiteiras. E tudo faziam sem ter patrão, feitor, gerente, superintendente, chefe, guia ou qualquer regulamento estabelecendo regras fixas. Era a vontade coletiva de tornar realidade o que era considerado utopia.

Enquanto a terra plantada não produzia, uma parte dos colonos iniciou a feitura de barricas. Feitas com madeira dos pinheiros abundantes da região, eram vendidas na cidade de Palmeira, onde serviam para guardar erva-mate.

Outra parte dos colonos aceitou trabalhar na construção de uma rodovia ligando Serrinha a Santa Bárbara.

O pagamento recebido por essas atividades garantia recursos para comprar o que fosse necessário para todos: alimentos, roupas, remédios, calçados, instrumentos de trabalho...

O trabalho coletivo ergueu silos para guardar a colheita. Também represou as águas do rio das Pedras, construindo um tanque para criação de peixes.

A produção era para o consumo coletivo, e os excedentes eram vendidos para a cidade de Palmeira. A importância apurada devia ser guardada em caixa comum, de acesso a qualquer um.

Na Colônia Cecília havia uma escola, e na casa comunal, além das assembléias para orientação das tarefas e discussões políticas, realizavam-se festas e debates sobre questões gerais. Apesar das dificuldades, a colônia se desenvolveu.

Sua desintegração ocorreu por várias razões. Uma delas foi a epidemia de crupe que vitimou vários colonos. Outro fator da desagregação foi a fuga à vida comunitária, seja porque muitas pessoas não se adaptaram ao trabalho rural, seja porque preferiram se afirmar profissionalmente nas cidades.

Igualmente importante foi o fato de um dos colonos ter se apropriado do dinheiro apurado com a venda dos excedentes da produção de 1893.

Em meio ao desânimo geral, a Colônia Cecília sofreu os efeitos da conjuntura de lutas e violências que marcaram o governo Floriano Peixoto, principalmente com a Revolução Federalista (1892-1895). A existência do Batalhão Ítalo-Brasileiro, formado em Curitiba para lutar contra o governo federal, acabou resultando na invasão da Colônia Cecília pelas tropas legalistas. Quando os soldados se retiraram, o moinho estava quebrado, os instrumentos de trabalho haviam sido destruídos, muitas casas e o tanque arrasados, o milho colhido e as sementes jogados no rio das Pedras... Além do mais, os governistas invasores carregaram os alimentos armazenados e os animais de criação.

Foi o fim. Os sobreviventes se dispersaram. Estávamos nos primeiros meses de 1894. Terminara o sonho da Colônia Cecília, baseado no trabalho livre, na vida livre, no amor livre. Terminava uma experiência diferente da estrutura agrária dominante na economia brasileira.


AQUINO, Rubim Santos Leão de [et al]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 134-136.

NOTA: O texto "Experiências anarquistas: a colônia Cecília" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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