"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

As especiarias na Idade Moderna

Os "Mulus" colhendo pimenta preta. Ilustração francesa de As viagens de Marco Polo.

Na Antiguidade já eram conhecidas e valorizadas algumas das especiarias asiáticas que chegavam à Europa, onde eram consumidas pelas elites. Alarico, o general visigodo que em 408 sitiou Roma, exigiu como resgate para deixar a cidade, entre outras coisas, 3 mil kg de pimenta.

A pimenta (Piper nigrum), conhecida por nós como "do reino", era o principal desses produtos. Seu uso não era propriamente culinário, mas tratava-se, como a maioria das especiarias, de substância "quente", que servia para equilibrar os humores do corpo, que, segundo a medicina hipocrático-galênica, para ser saudável devia ter a tendência ao calor e à secura. Os temperamentos eram constituídos assim em função das temperaturas, as quais as especiarias (os temperos) podiam equilibrar (temperar).

As especiarias, portanto, mais que meros condimentos, eram substâncias preciosas, usadas como signo de distinção social, em um consumo suntuário, representando remédios provedores de calor e energia. Eram alimentos-droga, e a própria palavra droga vem de um termo holandês para "produto seco".

No século XV, o comércio de especiarias orientais na Europa foi objeto de guerras comerciais entre Gênova e Veneza, que venceu a disputa e dominou o comércio com os árabes e otomanos. Com a descoberta por Vasco da Gama, em 1498, do caminho às Índias Orientais pelo contorno do sul da África, pelo cabo da Boa Esperança, os portugueses passaram a predominar nesse tráfico e construíram todo um sistema de feitorias pela Ásia para garantir a posse desses tesouros vegetais. Para legitimá-los, contavam com várias bulas papais que lhes concederam, assim como para os espanhóis, o privilégio de exclusividade na exploração da África, Ásia e América, sob a justificativa da expansão da fé.

A segunda expedição portuguesa enviada para a Índia, após o retorno de Vasco da Gama, foi a liderada por Pedro Álvares Cabral, que descobriu o Brasil em 22 de abril de 1500 e depois continuou sua viagem para a Índia, onde combateu o reino local de Calicute e muitos morreram, incluindo Pero Vaz de Caminha.

Mais tarde, os portugueses derrotaram uma esquadra árabe-veneziana-indiana coligada na costa da Índia, em Diu (1509), e conquistaram sucessivamente Goa (1510), Malaca (1511), as ilhas de Amboíno, Ternate e Tidore (1514), Ormuz (1515) e se estabelecem em Colombo, no Ceilão (1519).

A primeira viagem ao redor do mundo, realizada pela expedição espanhola de Fernando de Magalhães, entre 1519 e 1522, tinha os cravos como "o principal objetivo de nossa viagem", conforme as palavras de Pigaffeta, autor do diário de bordo.

A pimenta vinha da costa ocidental da Índia, cujos reinos hinduístas de Calicute e Cochim a forneciam aos portugueses. A canela (Cinnamomum zeylanicum), do Ceilão. O cravo (Caryophylus aromaticus), das ilhas Amboíno, Ternate e Tidore, no arquipélago das Molucas, atual Indonésia. Das minúsculas ilhas de Banda, ao sul das Molucas, também procedia a noz-moscada (Myristica fragrans). Gengibre, ópio e outros produtos de menor importância completavam as cargas das naus mercantes. O padre jesuíta francês Pierre du Jaric, em 1608, exclamava: "Parece que Deus quis esconder aos homens em ilhas tão pequenas e tão remotas as iscas da glutonice".

A partir de 1595, os holandeses seguiram o mesmo caminho dos portugueses e passaram a se apossar das fontes das especiarias. Não reconheciam mais a autoridade do papa e predominaram militarmente tanto na Europa, onde venceram a guerra pela independência da Espanha, como no âmbito colonial. Numa verdadeira guerra mundial, tomaram o cravo da ilha Amboíno em 1605, fundaram Batávia, na ilha de Java, em 1609, depois tentaram se apossar do açúcar do Brasil, em 1624 e entre 1630 e 1654, e por fim tomaram o Ceilão e sua canela em 1658.

No Brasil, desde o século XVI, d. Manuel proibira o plantio das especiarias asiáticas, exceto o gengibre, mas, por outro lado, o comércio das drogas do sertão iria adquirir importância após o século XVIII, quando a quinina, a ipecacuanha (poaia), o cacau e outros produtos vegetais se tornaram importantes itens da exportação do Grão-Pará.

O holandês Gaspar Barléu escreveu, no século XVII, que as "drogas quentes", "temperadoras dos frios", eram, "a pimenta, o macis, a noz-moscada, a canela, o cravo, o bórax, o benjoim, o almíscar, o estoraque, o sândalo, a cochonilha, o índigo, o bezoar, o sangue-de-drago, a goma-guta, o incenso, a mirra, as cubebas, o ruibarbo, o açúcar, o salitre, a goma-laca, o gengibre". Também o açúcar e o tabaco são especiarias que, de produtos de luxo de consumo conspícuo, iriam se tornando aos poucos de alcance maciço, uma "vulgarização do luxo", como se refere o historiador Fernand Braudel, que destacou a importância central dessa massificação de mercadorias de luxo na formação do sistema mercantil moderno.

O comércio transoceânico de especiarias, tabaco, açúcar e outros produtos unificou pela primeira vez o globo, expandiu impérios ocidentais a um domínio inédito sobre o planeta, foi objeto de guerras e acumulou o capital da Revolução Industrial. O consumo cada vez mais intenso desses gêneros os tornou de primeira necessidade e fez de seu consumo um tempero da vida. A revolução que promoveram não foi apenas no gosto alimentar, mas na economia, nas relações internacionais e nos estilos de vida.

Henrique Carneiro. Especiarias. In: BETING, Graziella. História de A a Z: [volume] 3: Idade Moderna. Rio de Janeiro, Duetto, 2009. p. 74-75.

NOTA: O texto "As especiarias na Idade Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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