"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 6 de outubro de 2013

O golpe de 64 e a ditadura militar 1: o jogo político

Uma confissão, João Câmara Filho

Ao "perder a identidade", os militares subverteram o conceito de nacionalidade. Adotaram uma teoria de segurança nacional que ditou a sua ideologia política. Essa ideologia, acima da nação, explica a conduta dos militares. Após a tomada do poder, eles desprezaram os políticos, menosprezaram as instituições (Congresso, Judiciário etc.) e instalaram a "sua" ditadura. Mas esta perdeu rapidamente a "pureza original", degenerando-se em um sistema repressivo.

A mais sutil descrição dessa ditadura foi feita por Roberto Campos, um dos principais economistas convocados pelos militares. Segundo ele, o golpe militar tomou duas medidas de reforma institucional.

Primeiro: a abolição dos partidos tradicionais, excessivamente personalistas e facciosos, e sua substituição por um sistema bipartidário, o que presumivelmente facilitaria a manutenção da disciplina partidária em apoio a planos e programas governamentais; segundo, a ab-rogação do poder do Congresso de aumentar o dispêndio orçamentário, que tornaria impraticável qualquer planejamento financeiro consistente.

Traduzindo: acabam-se os partidos, para eliminar a oposição ao Executivo; limita-se o poder do Congresso, para que ele não atrapalhe o planejamento econômico dirigido. Isso redundou em algo menos eficiente e mais violento do que as experiências dos regimes fascistas tradicionais: a ditadura militar no Brasil (como na Argentina e no Chile) inaugurou uma nova modalidade de poder autoritário, mas "burra" e mais bruta que as já conhecidas. Para ser mais "burra", fez amplo uso da "sua" inteligência. O "burro-inteligente" impõe-se pela esperteza; a esperteza desafia a lógica, não teme a desrazão, e multiplica-se em brutalidade para exercer o poder pela força - das armas ou da sua "juridicidade" específica. Tal atitude requer uma ausência total de autocrítica e um desprezo imperial pelo povo. Esse desprezo entranhou-se no mecanismo do governo. Seus burocratas olhavam a nação de cima, sentindo-se super-homens sobre uma legião de pretos, baianos, paraíbas, banguelas etc.

O desembargador Otávio Gonzaga Júnior, secretário da Segurança de São Paulo, em 1979, traduz bem como o grupo de poder revelado pelo golpe de 64 via o povo: "O brasileiro é um despreparado em termos gerais, todos nós sabemos disso. Este é um país de miseráveis, favelados, ignorantes e analfabetos, e é evidente que todos estes elementos criam dificuldades". O desembargador fez essas declarações à Folha de S. Paulo para justificar a violência policial. Entre outras preciosidades, afirmou que "esse país é um monstro. Com gente ignorante, gente marginal, gente miserável, gente desobediente por todos os lados".

Essa posição ultrapassa o fascismo. Mussolini queria "conduzir" o povo porque o julgava vítima, incapaz de defender-se das elites. O fascismo italiano, como o português do ditador Antônio de Oliveira Salazar, menosprezava a competência política do povo e o intimidava, mas não o desprezava. Esses dois fascismos clássicos precisavam do povo para ter uma massa de manobra. A ditadura militar brasileira simplesmente desprezava a nossa legião de banguelas e miseráveis e sustentava-se pela sua própria força: não dava satisfações aos "paisanos".

[...]

No Brasil dominado pela Doutrina de Segurança Nacional, o desprezo pelo povo ergueu uma barreira tão grande entre o Estado e a Nação, que a ideia de "inimigo interno" aflorou "naturalmente".

A criação do inimigo interno só se tornou possível com a ascensão da geopolítica. Os geopolíticos, inspirados pelo general Golbery, subverteram a questão da segurança nacional. Antes deles, a agressão externa vinha obviamente do Exterior. Com eles, mudou-se a definição de fronteiras. O inimigo estava nas nossas "fronteiras ideológicas". Já não importavam os limites territoriais. O inimigo estava em toda parte, preferencialmente dentro do país, na falta de uma ameaça de fora.

Os que discordavam do regime eram inimigos. Como eles encontravam-se dentro do Brasil, eram inimigos internos. Ao criar essa figura, o regime subverteu o nosso tradicional conceito de defesa. A nova Constituição militar incorporou vários dispositivos para favorecer a repressão. O artigo 89, por exemplo, transformou todos os brasileiros em responsáveis pela segurança nacional. Assim, quem não acusasse a presença de um inimigo interno, em qualquer setor da atividade social, seria ele também um inimigo interno.

Institucionalizou-se a delação, até por uma mesquinha questão de sobrevivência pessoal. Então, o diretor da escola começou a denunciar o professor que abordava determinados temas proibidos, para não ser punido com ele. Estabeleceu-se um regime de terror, responsável pelo enriquecimento do nosso vocabulário: o povo entendeu que vivíamos um período de dedurismo; o verbo "dedo-durar" entrou para as conversas comuns e a figura do "dedo-duro" popularizou-se como o novo símbolo do canalha nacional.

Incorporado ao cotidiano, o dedo-duro passou de temido - e muitos fizeram carreira dedurando - à desmoralizada condição de personagem de piadas. O humor, porém, não desculpava a sua ação e muito menos amenizava a sua relação direta com a ideologia do regime militar. [...] O alcagüete do universo policial, rebaixado a dedo-duro, passou a integrar perigosamente a gíria política e invadiu o dia-a-dia brasileiro com o poder de desgraçar cidadãos.

Sem o apoio do povo, o regime militar teve de suspender eleições, fechar o Congresso e desrespeitar o Judiciário. Estava acima do povo e das leis. Seu poder vinha das armas. Sustentava-se ideologicamente na Doutrina de Segurança Nacional e nos vagos princípios de uma geopolítica degenerada. Refletia também, pelas suas origens, a reação contra as reformas sociais, e defendia uma situação política estacionária que agradava aos Estados Unidos.

Na falta de apoio interno, procurou a aprovação externa. Um dos mais deprimentes esforços para bajular os norte-americanos foi patrocinado pelo general Juraci Magalhães, em junho de 1964. Em declaração à imprensa de Washington, ele afirmou, entre orgulhoso e submisso: "Tudo o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil". A frase do general passou para o folclore nacional como um ato de servilismo. Mas além da folclórica vergonha a que expunha o Brasil, exprimia uma realidade que os governantes militares assumiam no relacionamento internacional.

Traduzindo a disposição de favorecer os Estados Unidos, uma sutil mudança introduzida na Constituição de 1967 praticamente entregou nossas riquezas minerais aos estrangeiros. Até 1964, as empresas internacionais enfrentavam restrições para a exploração do subsolo brasileiro. O artigo 161 da Constituição de 1967 considerou as riquezas minerais como "propriedade distinta da do solo", permitindo a sua extração por "sociedades organizadas no país". Com esse artifício, as multinacionais, desde que constituíssem subsidiárias ou filiais no Brasil (as populares "empresas testas-de-ferro"), poderiam explorar os nossos minérios. Com exceção do petróleo, que não interessava a ninguém, abriu-se a temporada de caça ao manganês, à bauxita, ao cobre, ao ouro, ao urânio, ao alumínio etc.

Esse foi o resultado prático, econômico, de uma ideologia que se impôs pela força, desprezando os conceitos de nação e nacionalidade e substituindo-os pela paranóia da segurança nacional.

O regime também se valeu da brutalidade dos atos institucionais e das suas inúmeras emendas. Um exemplo clássico é a emenda de 11 de novembro de 1971, que autorizou o Executivo a promulgar decretos-leis secretos (que obviamente não eram divulgados). Chegamos à situação em que qualquer cidadão poderia transgredir - e ser preso por isso - uma "lei" desconhecida por toda a nação. Esses decretos-leis secretos não foram usados apenas no pior momento da ditadura: eles estrearam com o general Emílio Garrastazu Médici, em 1971, mas, a partir de 1979, o general João Figueiredo "decretou" secretamente mais do que o próprio Médici.

A inversão de valores promovida pelos militares ficou bem clara logo que eles tomaram o poder. O último parágrafo do Ato Institucional nº 1 não deixava dúvidas quanto ao futuro do novo governo e do seu caráter antidemocrático:

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.

Na esteira dessa prepotência, surgiram os Tribunais Militares, para julgar os inimigos internos. Esses órgãos eram formados por quatro militares e um juiz togado. O despreparo dos militares chegava ao ponto de muitos se declararem constrangidos no desempenho da função. Os Conselhos de Justiça compunham-se de oficiais aquartelados, desde que não fossem comandantes de tropa. Essa gente decidia o destino dos "criminosos políticos", aplicando as leis arbitrariamente. [...]

[...]

A concentração de poder nas mãos dos militares, que se encaminhavam para um Estado totalitário, começou a ameaçar as elites, porque pressupunha uma enorme capacidade repressiva. O poder centralizado restringia a mobilidade da sociedade civil, impedindo o seu acesso aos mecanismos políticos. A violenta censura imposta à imprensa desgostou as "classes culturais". O enlaçamento do Estado com as multinacionais prejudicou alguns setores da indústria nacional. A longo prazo, especialmente quando o "milagre econômico" mostrou-se falso [...], a pressão da sociedade deu início à ruptura da aliança que possibilitou o golpe.

[...]

Os militares não abriram mão do jogo político, mas criaram as suas próprias regras. Usaram cartas marcadas, alterando o resultado de votações no Congresso ou "compensando" as derrotas nas urnas. Esse jogo político adulterado, arremedando uma democracia para convalidar a ditadura, foi necessário para articular o poder do Estado com a sociedade civil.

Talvez a palavra mais ouvida nos discursos dos militares tenha sido democracia. Em nome da democracia fechou-se o Congresso, reabrindo-o "legitimado" pela cassação de parlamentares eleitos pelo povo. Suspenderam-se eleições diretas para os governos dos estados e para a Presidência da República. Os prefeitos das capitais passaram a ser indicados por governadores escolhidos indiretamente por um colegiado de deputados, do qual se excluíam os inimigos do regime. [...] Foram várias medidas do gênero, além de uma longa série de violações dos direitos humanos, tudo em "defesa da democracia".


A verdade ainda que tardia (painel instalado na Câmara), Elifas Andreato

[...]

O Ato Institucional nº 1 (AI-1), de 9 de abril de 1964, aquele que dizia que a revolução legitimava-se a si própria, afastou qualquer possibilidade de o povo influir no destino político do Brasil. O Congresso, já expurgado da oposição, funcionaria como um apêndice burocrático, legalizando as decisões do Executivo, que detinha o poder de fato. [...] Assim, os militares esperavam apresentar os seus decretos como "democraticamente" avalizados pelo Congresso.

O AI-1 suspendeu por seis meses as garantias constitucionais, medida que permitiu a realização das famosas "investigações sumárias". Funcionários públicos foram convidados, praticamente sem direito de defesa, a deixar os seus cargos, ignorando-se as prerrogativas de estabilidade ou vitaliciedade. O artigo 7 do AI-1 possibilitou o afastamento de cientistas e professores das faculdades, promovendo o início da conhecida "evasão de cérebros".

[...] O decreto viabilizou a suspensão, por dez anos, dos direitos políticos daqueles que incomodavam os militares. Na primeira onde de cassações patrocinada pelo AI-1, 140 cidadãos perderam os seus direitos políticos. Muitos deles passaram pelo Inquérito Policial Militar (IPM), que, sobrepondo-se ao Judiciário, indiciou e condenou milhares de pessoas.

Depois de cassar mais de uma centena de deputados, o AI-1 garantiu a escolha do general Castelo Branco para presidente da República [...].

O AI-1 foi o primeiro golpe repressivo oficial da ditadura. Entre os que perderam os seus direitos políticos, estavam os presidentes Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart. Completavam a lista seis governadores, dois senadores e 63 deputados federais. A lista continuou aumentando, com a inclusão de outros trezentos políticos, entre deputados estaduais, prefeitos e vereadores. As Forças Armadas não saíram ilesas: 77 oficiais do Exército, catorze da Marinha e 31 da Aeronáutica também perderam os seus direitos políticos. Mas a "caça" não parou por aí: demitiram-se 10 mil funcionários públicos e, posteriormente, o presidente Castelo Branco instaurou a Comissão Geral de Investigação (CGI), que atingiu mais de 40 mil pessoas.

O AI-1 e o seu uso pelo presidente Castelo Branco desmascararam as intenções "democráticas" dos militares. Porém, a institucionalização da ditadura veio mesmo com o Ato Institucional nº 2, provocado pela vitória dos candidatos da oposição aos governos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Prevendo futuras derrotas eleitorais e temendo o surgimento de novos líderes, em outubro de 1965 editou-se o AI-2, que extinguiu todos os partidos políticos e deu poder ao Executivo para fechar o Congresso quando julgasse necessário.

[...] O texto do AI-2 começa com a afirmação: "Não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará".

E, para continuar, cerceou-se a liberdade política. A partir do AI-2, só foram permitidos dois partidos políticos: a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Esses partidos fariam o papel de situação e oposição consentida. A sabedoria popular logo os apelidou de "partido do sim" e "partido do sim senhor".

Em fevereiro de 1966, o Ato Institucional nº 3, entre outras medidas, ampliou o controle político e restringiu ainda mais o direito ao voto popular, impondo eleições indiretas também para governador. Enquanto se editavam todos esses atos, nos bastidores da ditadura travava-se a luta política para a sucessão de Castelo Branco. O confronto foi vencido pela chamada "linha dura", que levou o general Costa e Silva à Presidência em março de 1967. A vitória de Costa e Silva custou a cassação de mais seis deputados federais e a agressão ao Congresso, que, ainda no período "democrático" de Castelo Branco, chegou a ser fechado uma vez e a ficar cercado por tropas do Exército.

A Presidência do general Costa e Silva, como era de esperar, "endureceu" a situação política. Em seu governo, decretou-se uma nova Constituição e promulgou-se a Lei de Segurança Nacional, que praticamente tornou todos os cidadãos suspeitos, ativa ou passivamente. Surgiu também a nova Lei de Imprensa, com restrições brutais à liberdade de informação: com a nova lei, quase todas as denúncias contra o presidente, fundamentadas ou não, eram ilegais.

No entanto, a violência repressiva desses atos não anulou a capacidade de resistência popular. Pelo contrário, despertou a luta clandestina, as greves, as manifestações de fábrica e as estudantis. Por isso, o governo militar editou o Ato Institucional nº 5.

O AI-5 nasceu para inibir as greves dos metalúrgicos de Contagem (MG) e Osasco (SP), conter as manifestações estudantis e anular a crescente militância dos trabalhadores. Estava pronto desde julho de 1968, aguardando um pretexto para ser assinado. O pretexto foi o discurso do deputado Márcio Moreira Alves, na Câmara, criticando os militares e propondo o boicote dos civis às comemorações do Dia da Independência. O governo pressionou o Congresso para punir o deputado. As guarnições sentiram-se "insultadas". Algumas unidades ameaçaram "sair às ruas". Mas o Congresso recusou-se a punir o deputado, que na verdade fizera um pronunciamento normal. O presidente Costa e Silva, assumindo a "indignação" da "tropa ofendida", assinou o AI-5, em 13 de dezembro de 1968.

O AI-5 fechou o Congresso indeterminadamente e, ao contrário dos outros atos, não tinha "prazo de validade": a ditadura assumia-se eterna. No rastro da repressivo, mais 69 deputados foram cassados - nem mesmo o governador Carlos Lacerda escapou, que já conspirava contra o regime. O AI-5 dava tantos poderes ao presidente, aumentando a repressão e a censura à imprensa, que qualquer oposição real tornou-se impossível. A partir daí, só houve um caminho: a luta clandestina. Os políticos limitaram-se a "confabular", esperando a abertura do regime.

Quando parecia que o Brasil teria de conformar-se com esse sistema extremamente repressivo por um longo período..., as coisas pioraram. Em agosto de 1969, o presidente Costa e Silva foi vítima de uma trombose, segundo a versão oficial. A doença ficou envolvida em mistério. Havia uma grande dúvida se o general Costa e Silva morreu de "causa natural" ou de causa mais obscura. A repressão e a censura, com o costumeiro mutismo dos militares, que não se sentiam na obrigação de dar satisfações a ninguém, provocaram o aparecimento de muitos boatos.

O fato é que à doença de Costa e Silva seguiu-se um golpe: o vice-presidente Pedro Aleixo, um civil com fama de "liberal", não pôde assumir a Presidência. Os três ministros militares "tomaram o governo, formando uma Junta Militar que apertou ainda mais o aparelho repressivo. Criaram-se as penas de morte e de banimento, em resposta aos sequestros políticos que a guerrilha urbana vinha fazendo. A Constituição ganhou mais um "remendo": a emenda nº 1, que deu ao presidente poderes para a aplicação da Lei de Segurança Nacional.

E, "democraticamente", reabriu-se o Congresso, para que ele aprovasse o novo ditador: o presidente Emílio Garrastazu Médici. Médici inaugurou o período mais duro da repressão contra a crescente oposição clandestina. Será o presidente mais bem-sucedido, o patrocinador do "milagre econômico". Em pouco tempo, porém, os resultados artificiais da sua política de "Segurança e Desenvolvimento" iriam aparecer, demonstrando que a propaganda e a censura encobriam a deterioração das bases econômicas, enquanto o povo e, principalmente, a classe média alta festejavam a conquista da Copa do Mundo e um consumismo desvairado.

[...] A ditadura verticalizou o poder, transpondo para as relações políticas algo parecido com a hierarquia dos quartéis. Beneficiando esse quadro, havia as leis repressivas e os conceitos geopolíticos [...]. Consequentemente, passou-se a cultivar um certo rigor administrativo contra tudo o que parecesse "subversivo".

Assim, antes de qualquer decisão, tornou-se natural no Estado brasileiro, em todos os escalões da burocracia, verificar se ela poderia ser rotulada de subversiva ou, no mínimo, se estaria contra o pensamento militar. Não é preciso dizer que a repressão ficou mais "facilitada".

[...] O Ministério do Trabalho, por exemplo, fez uma "depuração" nos sindicatos, intervindo em 563 deles até 1970. [...]

[...]

Estado e burocracia estavam coesos. Isso significa que o governo militar assimilou a máquina burocrática, em todos os seus escalões. Daí por que "ninguém escapou da repressão ideológica e por que os escândalos de corrupção do governo militar permaneceram tão eficientemente camuflados durante anos.

O jogo político, embora com cartas marcadas, provocou algumas dissidências. A primeira foi a do general Mourão Filho, que esperava tornar-se comandante do I Exército ou presidente da Petrobrás. Não conseguiu. Instável psicologicamente, decepcionado, ele partiu para o ataque, ainda no governo de Castelo Branco.

Tentou ser candidato às eleições indiretas à Presidência da República pelo recém-criado MDB. Fracassado esse projeto, depois do AI-2 passou a hostilizar a Lei de Segurança Nacional. Como era juiz do Supremo Tribunal Militar, tinha força para as críticas. [...]

Mal superada a crise do general Mourão Filho, o general Kruel, que aspirava à Presidência, iniciou uma campanha de desestabilização, visando substituir o presidente Castelo Branco. Movimentou-se por alguns estados brasileiros, em 1965, concedendo entrevistas desafiadoras, mas acabou punido "por deixar o comando sem autorização".

[...]

Essas e outras ameaças à estabilidade do primeiro governo militar causaram mais irritação do que perigo. O general Peri Belivacqua chegou a dizer que o golpe havia transformado a nação "em um vasto quartel" e que a Lei de Segurança Nacional "equivale a um permanente estado de sítio e constitui uma ameaça que o povo não merece".

[...]

Ocorreram também "baixas" entre os aliados civis. Representaram menos perigo, porém causaram mais estardalhaço. Acusado de corrupção, o governador de São Paulo, Ademar de Barros, foi cassado em 1966. Na verdade, recebeu uma punição por disputar a sucessão de Castelo Branco. Carlos Lacerda, afastado do círculo de poder, começou a conspirar e, em 1968, também foi cassado, depois de ter coordenado uma frente ampla de oposição.

Mas a principal articulação para derrubar Castelo Branco partiu do governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto. Em novembro de 1965, Magalhães Pinto reuniu-se no Rio de Janeiro com o almirante Silvio Heck, planejando um golpe que visava depor Castelo Branco no dia 1º ou 2 de dezembro daquele ano. Apesar da seriedade da conspiração, que envolveu vários generais e coronéis, Castelo Branco não ousou cassar o governador. Aparentemente, houve uma conciliação e, em 1967, Magalhães Pinto ganhou o Ministério das Relações Exteriores como prêmio de consolação, ficando no cargo até 1969.

Esses fatos demonstram que os militares conquistaram o poder e anularam com relativa facilidade as oposições políticas. Mas entre os seus próprios aliados surgiram dissidências lutando pelo poder. [...]

Com o fim dos partidos, grande parte dos políticos de oposição que escaparam das cassações incorporou-se ao MDB. Aos poucos, o novo partido foi superando os oportunistas e "infiltrados" dos autênticos. À medida que o povo identificou no MDB um canal contra a ditadura, passou a votar nos seus candidatos. De 1966 a 1974, por exemplo, ele cresceu a ponto de equilibrar o jogo político. Em 1966, a Arena obteve 56,6% dos votos para o Senado e o MDB, 43,4%. Em 1970, ano do "milagre" e da censura a todo vapor, a Arena conseguiu uma grande maioria: 61,4% contra 38,6%. Mas, em 1974, reverteu-se o quadro: o MDB alcançou 59,3% dos votos e a Arena ficou com 41%. [...] 

O MDB avançou, apesar das alterações na legislação eleitoral, que visavam favorecer a Arena. As eleições de 1974 demonstraram que o povo repudiava a ditadura. Para frear o crescimento da oposição, o governo decretou a Lei Falcão, em novembro de 1976. Essa lei praticamente acabou com a campanha eleitoral: os candidatos ficaram proibidos de transmitir mensagens - só podiam apresentar a sua foto e o seu nome na televisão.

Vetando o discurso oposicionista, o governo esperava travar o avanço de votos do MDB. Um estudo do SNI alertou o governo de que o MDB venceria as eleições municipais de 1976, caso não houvesse uma "regulamentação" no processo eleitoral. A Arena disputou as urnas com todas as vantagens: apoiada na máquina administrativa, favorecida pela falta de críticas e, não menos importante, usando a pressão da ditadura para assustar a população. caracterizando como subversivo e ilegal tudo o que fosse contra o governo.

Ainda assim, a vitória governamental foi mínima: a Arena ficou com 35% dos votos válidos e o MDB, com 30%. Com uma agravante: a oposição conquistou as prefeituras das maiores cidades, ganhando em dez das quinze cidades com mais de 500 mil habitantes. [...] Já a Arena transformou-se praticamente em um "partido nordestino", vencendo no interior e principalmente no Nordeste, onde os coronéis manipulavam o eleitor e até defuntos votavam.

É fácil observar que, apesar da censura e da repressão que apelou às cassações de políticos incômodos, o governo teve de aceitar um "jogo político" para se relacionar com a sociedade civil. [...]

[...]

Com o "jogo" nesse andamento, estava em curso a política de abertura "lenta e gradual do novo presidente, o general Ernesto Geisel (1974-1979). A abertura implicava mais riscos de o governo perder o controle político. Com o intuito de reverter novamente o quadro, o general Geisel não tentou mudar as regras eleitorais, mas sim limitar o Judiciário. Ele pretendia criar um Conselho de Magistratura - na verdade, uma "polícia" que controlaria os juízes, "disciplinando-os". [...]

A sociedade civil reagiu com vigor. Mesmo pressionados, os senadores e deputados do MDB rejeitaram os projetos do governo, O presidente Geisel respondeu com toda a força, ignorando a sua própria "abertura": fechou o Congresso. Transformou a sua vontade em lei, com as emendas constitucionais nº 7 e nº 8. Era o famoso "Pacote de Abril", de 1977, cujas consequências seriam vitais para o resultado das eleições em 1978.

Com as eleições indiretas e o artifício dos senadores "biônicos", a Arena passou a controlar o Senado com 22% dos senadores indicados. Houve a inversão do resultado eleitoral: o MDB obteve mais votos e a Arena venceu. Na eleição para o Senado, o MDB teve 56,9% dos votos válidos, mas ficou com nove senadores, enquanto a Arena conseguiu "eleger" 36.

Mas essas regras do jogo eleitoral não deram segurança política à ditadura. O processo repressivo não podia sobreviver sem articular-se com a sociedade civil. Ao mutilar as leis e forjar uma Constituição à sua imagem, a ditadura provoca uma repulsa política que abre possibilidades à organização da sociedade. E isso, aos poucos, vai minando o autoritarismo militar.

[...] As eleições de 1978 demonstraram que era preciso, também, acabar com o MDB. Assim, em 1979 extinguiram-se os dois partidos e a Nova Lei Orgânica dos Partidos restabeleceu o pluripartidarismo. O golpe de mestre - como o general Golbery o apresentou na ESG - deveria acabar com a oposição organizada.

A tática era simples: os integrantes da Arena, declaradamente governistas, formariam um novo partido, coeso e obediente como o antigo. Já o MDB, que reunia diversas tendências, pulverizar-se-ia em vários partidos, dividindo e enfraquecendo as oposições.

A nova lei mantinha o controle político: a formação de agremiações de "esquerda" ou "de classe" estava proibida. Os partidos a serem criados não poderiam fazer "arregimentações de filiados ou adeptos, com base em credos religiosos ou sentimentos de raça ou classe". Essa disposição visava evitar a constituição do Partido dos Trabalhadores (PT), que se organizava em São Paulo [...]. Só em 1982, o PT obteve o seu registro definitivo no Supremo Tribunal Eleitoral. Surgiram dois grandes partidos: o Partido Democrático Social (PDS), que substituiu a Arena, e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que ficou com a maioria dos integrantes do MDB. Apareceram outros menores, que flutuavam entre o governo e a oposição.

O resultado das eleições (e também do pluripartidarismo) não foi bom para o governo, já condenado abertamente pelo povo. Significativa foi a vitória, em 1982, de Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), no Rio de Janeiro. Uma vitória, de certa forma, emblemática: Brizola, que tinha sido o inimigo número 1 dos militares, venceu, apesar de todos os artifícios governamentais, inclusive a fraude. A apuração transcorreu com a escamoteação de cerca de 15% dos votos dados a Brizola, que foram transformados em "brancos" e "nulos". Nova contagem revelou o "equívoco" e incriminou uma empresa de computação, que contou com a cumplicidade (não provada, porém evidente) da Rede Globo na divulgação de resultados falsos. Desfeita a fraude, os militares da linha dura ainda tentaram anular a eleição, pedindo a volta do "verdadeiro espírito da revolução".

Em 1981, no governo do general João Figueiredo, um grupo de militares planejou explodir bombas durante um show musical no Rio-centro, pavilhão destinado a eventos culturais e artísticos, no Rio de Janeiro. A ideia era atribuir o atentado à "esquerda", criando um pretexto para inibir a abertura política. A farsa fracassou por acidente: uma das bombas estourou dentro de um carro, antes de ser colocada no recinto do espetáculo, matando o militar que o conduzia.

Esses acontecimentos [...] indicam que o jogo político foi necessário para a articulação do Estado com a sociedade civil. Revelam também que, mesmo fraudando e impondo medidas absurdas, os militares não conseguiram reverter o quadro de crescente repulsa ao regime.

[...]

O governo Geisel apresentou o enterro do AI-5 como o começo da nova democracia. Na verdade, pouco se alterou: as mudanças no comportamento repressivo do governo não passaram de um recuo diante do avanço das lutas populares e dos resultados eleitorais. Com o fim do AI-5, criaram-se as "salvaguardas", e a Lei de Segurança Nacional praticamente ficou incorporada à Constituição.

O jogo político imposto pelo governo militar promoveu a subversão dos princípios civilizados de fazer política. Ele deu força à ditadura, mas ajudou a sua própria destruição, à medida que se revelou prepotente e agressivo. Essa prática política minou o governo militar e, aos poucos, fortaleceu as correntes que lutavam para transformar a política em um verdadeiro jogo dos contrários, no qual se diverge, mas se respeita civilizadamente o próximo.

CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 2006. p. 102-123.

Próximo post: O golpe de 64 e a ditadura militar 2: a luta armada

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