"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Arte gótica: altura e luz

O nascimento da Virgem, Giovanni da Milano

O auge do desenvolvimento artístico da Idade Média, rivalizando com as maravilhas da Grécia e da Roma da antiguidade, foi a catedral gótica. De fato, essas "Bíblias de pedra" superaram até mesmo a arquitetura clássica em termos de ousadia tecnológica. Entre 1200 e 1500, os construtores medievais ergueram essas estruturas elaboradíssimas, com interiores atingindo uma altura sem precedentes no mundo da arquitetura.

O que tornou possível a arquitetura gótica foram dois desenvolvimentos da engenharia: abóboda com traves e suportes externos chamados arcobotantes, ou contrafortes. A aplicação desses pontos de apoio nos locais necessários permitiu trocar as paredes grossas com janelas estreitas por paredes estreitas com janelas enormes com vitrais inundando de luz o interior. As catedrais góticas não conheceram a Idade das Trevas. Sua evolução foi uma contínua expansão de luz, até que as paredes se tornaram tão perfuradas que ficaram verdadeiros pinázios emoldurando os imensos campos de vitrais coloridos que contam histórias religiosas.

Além da qualidade de treliça das paredes das catedrais (um efeito de "renda petrificada", como descreveu o escritor William Faulkner), a verticalidade caracteriza a arquitetura gótica. Os construtores usavam o arco pontudo, que aumenta tanto a ilusão como a realidade da altura. Os arquitetos competiam entre si para realizar as mais altas naves (em Amiens, a nave atinge a altura de 47 metros). Quando a ambição ultrapassava a tecnologia e a nave despencava, o que não era difícil acontecer, os fervorosos fiéis a reconstruíam.

As catedrais góticas eram um símbolo tão importante de orgulho cívico que o pior insulto para a cidade era um invasor pôr abaixo a torre da catedral. A devoção coletiva por esses prédios era tão intensa que todos os segmentos da população participavam da construção. Cavalheiros e damas, em contemplativo silêncio, trabalhavam lado a lado com açougueiros e pedreiros, empurrando carrinhos de mão cheios de pedras. Edificações tão complexas levavam literalmente séculos para ser construídas - a Catedral de Colônia levou seis séculos -, o que explica por que algumas parecem uma miscelânea de estilos sucessivos.

Os teólogos medievais acreditavam que a beleza da igreja inspirava a meditação e a fé dos paroquianos. Consequentemente, as igrejas são mais que uma simples reunião de espaços. São textos sagrados, com volumes de ornamentos pregando o caminho da salvação. As principais formas de decoração inspiradora nas catedrais góticas são a escultura, os vitrais e as tapeçarias.

As paredes externas das catedrais contavam histórias bíblicas esculpidas. As esculturas de Chartres, datando do início do período gótico, e as imagens da Catedral de Reims, do alto período gótico, mostram a evolução da arte medieval.

Em Chartres, as imagens de reis e rainhas do Velho Testamento (1140-50) são pilares com formas humanas, alongadas para caber nas estreitas colunas que as abrigam. As linhas do drapeado são tão finas e eretas quanto os corpos, com alguns traços de naturalismo. As imagens do umbral de Reims, esculpidas por volta de 1225-90, foram as primeiras, desde a antiguidade, a ganhar formas completas, de frente e costas. São estátuas quase totalmente destacadas do fundo arquitetônico, sobressaindo em colunas e pedestais. Após a descoberta dos escritos de Aristóteles, o corpo deixou de ser desprezado, passando a ser visto como templo da alma, e os artistas voltaram a representar a carne com naturalidade.

"A Visitação" representa a Virgem Maria como sua parenta Elizabeth apoiadas basicamente em uma das pernas, com a parte superior do corpo ligeiramente voltada uma para a outra. Elizabeth, mais velha, tem a face enrugada, revelando profundo caráter, e o drapeado é trabalhado com mais imaginação.

A Catedral de Chartres é a alma visível da Idade Média. Construída para abrigar o véu da Virgem, doado à cidade pelo neto de Carlos Magno - Carlos, o Calvo - em 876, é uma obra-de-arte multimídia. Os vitrais, a mais intacta coleção de janelas medievais do mundo, ocupam uma área total de 8.800 metros. Ilustrando passagens da Bíblia, as vidas dos santos e até mesmo os artesanatos tradicionais da França, os vitrais são gigantescos manuscritos iluminados.

Os tecelões da Idade Média criaram uma tapeçaria altamente refinada, detalhando em minúcias as cenas da vida contemporânea. Imensos tapetes em lã e seda, usados para cortar correntes de ar, decoravam as paredes de pedra de castelos e igrejas. Os motivos eram copiados de pinturas em escala enorme colocados por trás da urdidura (ou comprimento total dos fios) no tear.

Uma série de sete tapeçarias representa a lenda do unicórnio. Segundo a crença popular, a única maneira de capturar esse animal mítico era usar como isca uma virgem na floresta. O desavisado unicórnio iria dormir com a cabeça no colo da virgem e, quando acordasse, estaria preso. Uma vez capturado, o unicórnio deveria ser amarrado a uma romãzeira, árvore símbolo da fertilidade e que, por conter muitas sementes numa única fruta, era símbolo também da igreja. Durante a Renascença, o unicórnio era ligado ao amor cortês, mas, na ambígua representação em tapeçaria, deitado ou empinado, simboliza o Cristo ressucitado.

STRICKLAND, Carlo. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 28-29.

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