"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 31 de agosto de 2013

América 3: "Como uns porcos famintos, anseiam pelo ouro"

Códice Durán

Com tiros de arcabuz, golpes de espada e hálitos de peste, acometiam os escassos e implacáveis conquistadores da América. Assim conta a voz dos vencidos. Depois da matança de Cholula, Montezuma enviou novos emissários ao encontro de Hernán Cortez, que avançava rumo ao vale do México. Os enviados presentearam os espanhóis com colares de ouro e bandeiras de penas de quetzal. Os espanhóis "se deleitaram. Como se fossem macacos, sentavam-se com gestos de prazer e levantavam o ouro, como se aquilo lhes renovasse a iluminasse o coração. É certo que desejam aquilo com grande sede. Os corpos deles se incham de uma fome furiosa por aquilo. Como uns porcos famintos, anseiam pelo ouro", diz o texto náhuatl, preservado no Códice Florentino. Adiante, quando Cortez chegou a Tenochtitlán, a esplêndida capital asteca, os espanhóis entraram na casa do tesouro e "logo fizeram uma grande bola de ouro e puseram fogo, incendiando tudo o que restava, por valioso que pudesse ser: e então tudo ardeu. Quanto ao ouro, os espanhóis o reduziram a barras (...)".

Houve guerra, e finalmente Cortez, que perdera Tecnochtitlán, reconquistou-a em 1521, "Já não tínhamos escudos, já não tínhamos bordunas, e nada tínhamos para comer, e nada comíamos." Devastada, incendiada, coberta de cadáveres, a cidade caiu. "E toda a noite choveu sobre nós." A força e o tormento não foram suficientes: os tesouros arrebatados nunca satisfaziam as exigências da imaginação, e durante longos anos os espanhóis escavaram o fundo do lago do México, em busca do ouro e dos objetos preciosos supostamente escondidos pelos índios.

Pedro de Alvarado e seus homens arremeteram contra a Guatemala e "foram tantos os índios mortos que se fez um rio de sangue, que vem a ser o Olimtepeque", e também "o dia se tornou vermelho pela quantidade de sangue que correu naquele dia". Antes da batalha decisiva, "os índios atormentados disseram aos espanhóis que, se não os atormentassem mais, teriam ali muito ouro, prata, diamantes e esmeraldas pertencentes aos capitães Nehaib Isquin e Nehaib feito águia e leão. E logo entregaram tudo aos espanhóis, que com tudo ficaram (...)".

Antes de degolar o inca Atahualpa, Francisco Pizarro arrancou um resgate de "arcas de ouro e prata que pesavam mais de 20 mil marcos de prata fina e um milhão e 326 mil escudos de ouro finíssimo (...)". Depois arremeteu contra Cuzco. Seus soldados acreditavam estar entrando na Cidade dos Césares, tão deslumbrante era a capital do império incaico, mas não demoraram a sair do estupor e começaram a saquear o Templo dp Sol: "Forcejando, lutando uns contra os outros, cada qual querendo levar do tesouro a parte do leão, os soldados, com suas cotas de malha, pisoteavam joias e imagens, golpeavam os utensílios de ouro ou lhes davam marteladas para reduzi-los a um formato menor e portável (...). Atiraram ao forno todo o tesouro do templo para converter o metal em barras: as placas que cobriam os muros, as assombrosas árvores forjadas, pássaros e outros objetos do jardim".

Hoje em dia, no Zócalo - a imensa praça desnuda no centro da capital do México -, a catedral católica se levanta sobre as ruínas do templo mais importante de Tenochtitlán, e o palácio do governo está localizado em cima da residência de Cuauhtémoc, o chefe asteca enforcado por Cortez. No Peru, Cuzco teve sorte parecida, mas os conquistadores não puderam derrubar completamente seus muros gigantescos e hoje ainda se pode ver, ao pé dos edifícios coloniais, o testemunho de pedra da colossal arquitetura incaica.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 38-39.

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