"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 30 de março de 2013

O passado amoroso decomposto 1: da Mesopotâmia ao Renascimento

O jardim do amor, Loyset Liedet

A herança vem de longa data. Amores gravados em pequenas tábuas de argila datadas de 1750 anos antes de Cristo, atestam, no distante passado, as manifestações de amantes apaixonados ou enciumados. Aí se canta a fidelidade ou se leem declarações escancaradas como "tenho sede do teu amor", "você é a única". Mais de um milênio depois, Cântico dos cânticos revela palavras que transpiram amor e erotismo: "Beija-me na boca, tuas carícias são melhor do que vinho...". Isso em plena Bíblia, em uma reunião de textos profanos em que Deus sequer é mencionado.

Mas é no coração da Idade Média que encontramos sinais das mudanças que nos interessam. No fim do século XI, trovadores introduzem novas relações entre homens e mulheres. Para melhor visualizar a cena, pense o leitor em uma daquelas iluminuras medievais: em vergéis floridos, casais de enamorados são retratados com delicadeza. Elas com grandes coifas e cintura marcada por vestidos elegantes que desnudam, levemente, colo e ombros. Eles, trajados com curtas capas acinturadas de largas pregas e calças colantes que sublinham a estrutura musculosa do corpo. A linguagem dos olhares e das mãos diz tudo: o jardim é o lugar de passeios galantes que avivam a espera e retardam os carinhos. O amor puro é aí cantado em versos. Versos que celebram a continência sexual conservando, contudo, uma coloração carnal que agrada à aristocracia. Nessa época, a aventura do amor cortês erigiu como tema a exaltação carnal e espiritual nas relações amorosas entre homens e mulheres. Exaltação mais idealizada do que prática, mais descrita do que vivenciada. Emprestada de sociedades vizinhas, notadamente a árabe, tal aventura fervilha de imagens sobre a submissão do amante à sua dama, valorizando, ao mesmo tempo, qualidades viris, como a coragem, a lealdade e a generosidade, encarnadas no cavaleiro. Associada aos ideais da cavalaria, a erótica trovadoresca prometia aos que servissem na corte a alegria de serem distinguidos com um amor nobre e desinteressado. Era o amor cortês e dele deriva a palavra cortesia.

Porta-vozes dessa cortesia, os trovadores escrevem poesias e as colocam em música. Cada um escolhe a esposa de um senhor a quem consagra seus versos. A dama era posta em um pedestal, enquanto o homem se esforçava por ganhar seus favores. Tratava-se de uma situação nova, pois, até então, um homem que dirigisse a uma mulher casada uma canção de amor era punido com a morte. Na canção, todavia, a dama não era mais o objeto de que podia dispor à vontade, seu senhor e mestre. Era preciso merecê-la. Invertem-se os papéis. O homem vê-se menos conquistador do que conquistado. E a mulher, menos presa do que recompensa. O amor, por sua vez, é tão mais ardente quanto impossível.

O sentimento amoroso, essência de todas as virtudes, reproduzia as condições sociais então existentes. Ele traduzia um "serviço" de tipo feudal, mas, também uma série de provas que consistiam em um método de purificação do desejo. Para manifestar o valor de seu amor e merecer a eleita, o cavaleiro, deitado no mesmo leito que sua dama, separado dela por uma espada ou uma ovelha, símbolo da pureza, observava a estrita castidade. Todos os esforços de conquista terminavam, quando muito, em um casto beijo. Na intimidade amorosa, assim como em sociedade, o perfeito amante não era mais do que o fiel servidor de sua dama. Seus deveres consistiam em lhe satisfazer as vontades, em lhe agradar, em não amar mais ninguém, em ser discreto. Longe de ser mórbida por impor aos amantes a graça de contemplar o corpo nu da dama ou o asag, em que tudo era permitido menos o ato sexual: a ética dos trovadores foi um fenômeno estritamente moralizador e incrivelmente regrado. Em matéria amorosa foi a grande invenção do século XII. [...]

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O momento em que a poesia trovadoresca se expande é, também, aquele em que o Concílio de Latrão, reunido em 1215 pelo papa Inocêncio III, elabora a legislação do matrimônio, alçado a sacramento em 1439, em outro Concílio: o de Florença. Desde o século VIII a Igreja bate-se em favor da monogamia. Sim, pois os reis francos eram polígamos e a poligamia era um meio de exibir riqueza, poder e alianças políticas. [...] A reforma gregoriana no século XI define, portanto, que os casados devem respeitar a monogamia e os clérigos, se manter celibatários. Uns quanto os outros nunca foram totalmente fiéis às exigências da Igreja. Concubinas e amantes, como sabemos, existiram. Mas a poligamia desapareceu.

Tais decisões atingiram, de uma maneira ou de outra, as normas comunitárias que, de alto a baixo da escala social, regulavam as uniões conjugais no Ocidente cristão. Variando regionalmente, segundo tradições e culturas dos povos europeus, os ritos matrimoniais espelhavam sempre uma aliança que atendia, antes de tudo, a interesses ligados à transmissão do patrimônio, à distribuição de poder, à conservação de linhagens e ao reforço de solidariedades de grupos. [...]

Mais importante do que as uniões abençoadas, eram as "promessas de casamento", feitas pelo homem à família da noiva - os chamados esponsais ou desponsórios. Comemorados com grandes festas e troca de presentes, autorizavam, aos olhos da comunidade, a coabitação dos futuros cônjuges. A intervenção eclesiástica nesse processo tornou-se crescente a partir do século XIII, mas adaptou-se, em geral, aos costumes de cada lugar.

Assim, em meados do século XVI, já existiam, do lado católico, dois objetivos a propósito do casamento: reafirmá-lo como sacramento, pois protestantes como Lutero o julgavam apenas uma "necessidade física". E convertê-lo em instituição básica da vida dos fiéis, eliminando os ritos tradicionais e substituindo-os por uma cerimônia oficial e, aí, com padre e altar.

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Ao longo da Idade Média, enquanto trovadores cantavam amores impossíveis, os teólogos repetiam o aforismo de São Jerônimo: "Adúltero é também o marido muito ardente por sua mulher". Mas por que maridos não podiam amar apaixonadamente suas esposas? Porque para a antiga moral cristã, inspirada no estoicismo, a sexualidade nos fora dada exclusivamente para procriar. Era perverter a obra divina, servir-se dela por outras razões. Santo Agostinho, no século V, resumia o casamento à procriação e ao cuidado com os filhos. O prazer puro e simples era "concupiscência da carne", esterilidade que submetia a razão aos sentidos. E pior: na sua opinião, a força do desejo não viria de Deus, mas de Satanás.

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Durante a Idade Moderna, outra definitiva transformação acrescentou-se a essa tendência. Com o surgimento de um contrato que passou a exigir a presença de um padre e de testemunhas, a obrigatoriedade da promessa dos esposos, mais a presença do dote, das mãos sobrepostas, do anel e do princípio de indissolubilidade, as fronteiras entre as exigências do sacramento e as outras formas de convívio afetivo foram ficando cada vez maiores. Criou-se uma dicotomia. Por um lado, um sentimento regido por normas mais organizadas, além de critérios práticos de escolha do cônjuge: o chamado "bem-querer amistoso". De outro, o sentimento ditado por razões subjetivas, por vezes, inexplicáveis. Ou seja, lentamente construía-se um tipo de amor no casamento e, outro, fora. 

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Nos textos do apóstolo Paulo, o amor fora do casamento, a fornicatio, a immunditia é implacavelmente condenada. A principal razão do matrimônio era a de responder ao desejo físico dos esposos por uma obrigação recíproca.  [...]

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Se os padres da Igreja retomaram, por sua conta, as justificativas estoicas do casamento, São Paulo, por sua vez, mostrava ter reservas a esse respeito. O problema não parece lhe interessar. Ele o trata, de passagem, a propósito da mulher. Embora se salve pela maternidade, é ela que introduz o pecado no mundo - e não o homem. A fecundidade e a capacidade de procriar é tomada em conta como uma compensação para a inferioridade do sexo feminino. Malgrado sua preferência pela virgindade, São Paulo admite sem reserva o casamento e a união perfeita entre homem e mulher. [...]

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Grande ausente dos registros cotidianos, o sentimento, todavia, multiplica-se nos registros literários. E desde a Idade Média, pois se situa, comumente, o nascimento da imagem do amor-paixão [...] na civilização cortesã do século XII. Suas características seriam feitas de valores hostis ao casamento. Valores esses que fragilizavam a fidelidade conjugal. Sim, porque o amor cortês proibia terminantemente que se fizesse amor sem amor. [...] A exaltação amorosa, exaltação alheia a leis e regras, feita de devoção ao amado ideal, conduziu a aristocracia do início do Renascimento a valorizar, teórica e literariamente, a dama. Ou seja, a mesma mulher que era subserviente na vida real, condenada por São Paulo a obedecer. Próximo, às vezes, de um erotismo ao mesmo tempo erudito e interiorizado, seu conteúdo se alimenta a partir do século XVI de certa filosofia então muito na moda: o neoplatonismo. [...]

Ao chegar a Idade Moderna, três mudanças fundamentais têm lugar na sociedade ocidental: o Estado centraliza-se e seus tentáculos começam a invadir áreas em que ele nunca, antes, penetrara. Até mesmo a vida privada. Entre alguns exemplos dessa interferência poderíamos destacar o estímulo à oficialização dos casamentos e a perseguição aos celibatários; o reforço à autoridade dos maridos, que passam a exercer uma espécie de monarquia doméstica; a incapacidade jurídica das esposas, a quem não era consentido realizar nenhum ato sem autorização de seus maridos; e quanto aos filhos, estes não podiam casar sem autorização dos pais.

Uma segunda mudança: as Reformas Protestante e Católica, além de incentivar novas formas de devoção e piedade, tornaram suas igrejas mais vigilantes sobre a moral de seus fiéis. Entre os católicos, a Inquisição perseguia, além de heresias, crimes "sexuais", como a sodomia, o homossexualismo e as posições de coito julgadas pecaminosas. E, por fim, a divulgação da leitura e do livro tornou os indivíduos mais aptos a desembaraçar-se de velhas amarras. Mas a literatura, também, os deixou mais sujeitos a alimentar representações comuns e compartilhadas sobre temas como o amor e seu antagonista, a paixão.

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PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 69-78.

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