"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Perseguidores e perseguidos - O Santo Ofício no Brasil

Auto-de-fé no Terreiro do Paço, Portugal, século XVIII

Embora para algumas almas mais crédulas os trópicos estivessem de tal forma impregnados pelo mal que "por obra do próprio demônio o nome de 'Santa Cruz' foi substituído pela voz bárbara de 'Brasil', a maioria dos degredados e colonos comungava da crença segundo a qual "não existia pecado ao sul do Equador" - era a doutrina do "Ultra equinoxialem nom pecatur". De acordo com o relato estupefato do padre Nóbrega, feito dez anos depois de sua chegada à Bahia, "se contarem todas as casas desta terra, todas acharão cheias de pecados mortais, adultérios, fornicações, incestos e abominações [...] não há obediências, nem se guarda um só mandamento de Deus e muito menos os da Igreja".

Esse estado de coisas sofreria um duro golpe em junho de 1591. Foi quando chegou à Bahia o desembargador Heitor Furtado Mendonça, o primeiro visitador do Santo Ofício.

Uma das mais famigeradas instituições da humanidade, a Inquisição se instalara em Portugal em 1536 - por exigência pessoal do rei D. João III. O primeiro auto-de-fé e o primeiro herege queimado em praça pública vieram em seguida. Em breve, a paranóia, as delações e as torturas seriam exportadas para as colônias portuguesas de além-mar. De início, especialmente na vizinha Castela, a Inquisição estivera diretamente ligada aos dominicanos. Mas, apesar de muitos historiadores ligados à Ordem terem se esforçado para negá-lo, não restam dúvidas de que a Companhia de Jesus também foi francamente favorável à instalação dos tribunais do Santo Ofício - e usufruiu bastante da situação de terror provocada por ele, fortalecendo, dessa forma, seu poder entre as massas, não apenas em Portugal mas em suas colônias.

Ainda assim, embora o Brasil tenha assistido a várias manifestações de histeria - como a do jesuíta Luís da Grã que, em 1591, denunciou um certo Fernão Rodrigues por ter, numa procissão, dado "consolações e cousas doces" aos figurantes que representavam os fariseus "e nada ao que representava o Cristo" -, o Santo Ofício agiu com brandura na América Portuguesa. Ao contrário do que houve no Peru, o tribunal nunca chegou a ser instalado no Brasil, onde houve só "visitações".

Em sua permanência de quatro anos no país, o "visitador" Heitor Furtado percorreu as capitanias da Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. Tão logo colocava os pés em terra, ele instaurava o "Édito da Graça": um período de trinta dias durante o qual os fiéis podiam confessar espontaneamente suas culpas, escapando dos castigos corporais ou do confisco de bens. A seguir, se iniciavam as "denunciações". Na Bahia, em dois anos, houve 133 "culpas, confessadas ou denunciadas". Entre elas, 29 blasfêmias, 19 sodomias, quatro "pactos com o diabo", uma "defesa pública de fornicação" e um "fornecimento de armas a índios" e "pecados contra a fé".

A frouxidão que caracterizou a ação do Santo Ofício no Brasil, muito mais do que à "benevolência" da instituição, pode ser atribuída às circunstâncias com as quais o tribunal deparou: a terra era vasta e inculta; o povo, analfabeto e mestiço. As sutilezas teológicas criadas pelo Concílio de Trento eram ignoradas no trópico.

Na verdade, o principal motivo para o desembarque dos horrores persecutórios da Inquisição num lugar onde "não existia pecado" esteve diretamente ligado ao aumento da população de cristãos-novos (judeus recém-convertidos ao cristianismo) na colônia. A maioria deles mantinha relações comerciais com a Holanda - em guerra contra a Espanha, cuja Coroa havia absorvido a de Portugal, em 1580. Por isso, em 1592, o maior crime que se podia cometer no Brasil seria praticado por aquele que, aos sábados, ousasse trajar "o melhor vestido que tinha".

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 56-57.

Nenhum comentário:

Postar um comentário