"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Bossas Novas

Helô Pinheiro, a musa inspiradora de Garota de Ipanema, de Tom Jobim

A euforia desenvolvimentista do governo Kubitschek provocou, além de suas consequências econômicas, novas condições para a criação cultural brasileira. Foi um período fértil para o surgimento das chamadas "vanguardas" artísticas: poesia concreta, neoconcretismo, poesia práxis... E, na música, surgiu um movimento que, já a partir do seu próprio nome, funcionou como uma síntese e um lema dessa época - a bossa nova:

Se você insiste em classificar
Meu comportamento de antimusical.
Eu, mesmo mentindo, devo argumentar
Que isto é bossa nova
Que isto é muito natural.
O que você não sabe, nem sequer pressente,
É que os desafinados também têm um coração
[...]"
(Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça)

Todo esse desenvolvimento, evidentemente, não se processou sem traumas. [...] a inflação e as tensões sociais iriam produzir grandes mudanças no cenário político. Os artistas brasileiros tomaram parte ativíssima em todas essas transformações; e não só como indivíduos, mas também através de sua produção intelectual.

O movimento da bossa nova evoluiu rapidamente na direção da chamada "canção de protesto", que correspondia à poesia engajada ou participante:

Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Daqui do morro
Eu não saio, não.
Se não tem água
Eu furo um poço
Se não tem carne
Eu compro um osso
E ponho na sopa
E deixa andar
Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor,
Estou pertinho do céu.
(Opinião, de Zé Kéti)

Surgiram também autores que colocavam em suas peças a problemática social urbana (como o caso de um Nelson Rodrigues, que já estreara na década de 40) ou rural (como Jorge Andrade e Dias Gomes). O cinema começava a se firmar: em fins da década de 50 e início da de 60, começaram a aparecer os filmes de diretores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Rui Guerra e outros - o "cinema novo".

Todas essas novidades refletiam, no plano da arte, a crise da sociedade e do regime populista. Os artistas assumiam posições muitas vezes meramente doutrinadoras ou paternalistas em relação ao povo que queriam retratar na sua arte. Um jovem dramaturgo - Oduvaldo Viana Filho - dava, por exemplo, a uma de suas peças o título de "A mais-valia vai acabar, Seu Edgar"... Chocavam-se as tendências nacionalistas com as "entreguistas" na política e, na arte, a polêmica refletia, acirrada. A televisão começava a se tornar o grande veículo de massas que é hoje em dia.

Em tudo isso é importante assinalar o papel desempenhado por um grupo que foi dissolvido por força do movimento político-militar de 64: o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC da UNE). Esse grupo representou uma síntese da ideologia populista na área cultural e sua influência estendeu-se até depois da mudança do regime, tanto na música popular (a canção de protesto) como no cinema e na literatura. Na impossibilidade de modificar a realidade através da ação política, essa ideologia acabaria por tomar como um de seus caminhos aquele que foi, depois, chamado ironicamente de "esquerda festiva"...

Com suas diferentes tendências esses intelectuais permanecem participando, de uma maneira ou de outra, na tentativa de dar novos rumos à cultura brasileira. Seja com flores, barquinhos ou violões da bossa nova; seja com amanhãs e liberdades da música de protesto; seja com cangaceiros e marginais do cinema novo:

Dia de luz
Festa de sol
E um barquinho a deslizar
No macio azul do mar
[...]
Sem intenção
Nossa canção
Vai saindo desse mar
[...]
(O Barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)

Sei
Ninguém deve chorar
Ninguém deve sonhar
Tanta coisa perdida
Sei que esta vida se faz
Só a gente é capaz
De mudar nossa vida
Não sei quanto tempo é preciso esperar
Paz, igualdade, amor, liberdade
Vida que vai nascer
[...]
(Manhã de Liberdade, de Nélson Lins de Barros e Marco Antônio)

- Se entrega, Corisco!
- Eu não me entrego não.
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão
[...]
(Perseguição, de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol)

Além do mais, a fusão da arte erudita com a popular é cada vez maior. Poetas "literários" fazem parceria com compositores do povo. E, na prosa de ficção, surgiu nessa época um autor que viria recuperar para a literatura os personagens da marginalidade: João Antônio, com seu livro de contos intitulado Malagueta, Perus e Bacanaço (1962).

ALENCAR, Chico et alli. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 372-374.

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