"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 6 de janeiro de 2013

Ásia e África no comércio internacional


[...] O espaço marítimo que se estende desde as costas orientais da África até o sudeste asiático, penetrando até o Mediterrâneo através do mar Vermelho e até o Oriente Próximo pelo Golfo Pérsico foi, desde as origens da civilização, um lugar de freqüentes navegações, favorecidas pela regularidade das monções que sopram de sul a norte no verão e de norte a sul, no inverno, possibilitando percorrer longas distâncias em embarcações à vela.

Há pelo menos sete mil anos, já existia o tráfico marítimo no golfo Pérsico e, há cinco mil, a Mesopotâmia e a civilização do vale do Indo comerciavam entre si. No início de nossa era, há dois mil anos, havia, no Índico, uma densa rede de tráficos comerciais que ia desde Madagáscar até o sul da China em um amplo mercado que comercializava produtos da distante Europa (na Índia, encontraram-se objetos e moedas de ouro procedentes de Roma), marfim da África, estanho da Malásia e sedas da China.

Esses intercâmbios alcançaram tal importância que se pode afirmar que, entre 1250 e 1350, encontrava-se, ali, um mercado mundial em pleno processo de formação, diferente do que a Europa construiu em seu proveito a partir do século XVI, pelo fato de ser um sistema “policêntrico”, não dominado por um só povo, mas, que admitia a participação, em pé de igualdade, de europeus, asiáticos e africanos.

Num extremo deste mercado mundial, estavam as cidades-estado do leste da África, como Kilwa, um povoado com mesquitas e palácios, habitados por pessoas das mais diversas procedências, que devia sua importância ao fato de controlar a produção de ouro do interior africano (do reino de Guruswa ou Monomotapa, do qual se conservam as grandes ruínas de Zimbawe, a “grande casa de pedra”). Os comerciantes de Kilwa chegavam até o sudeste asiático, onde trocavam seus produtos com os da China.

Ruínas de Kilwa


No outro extremo desta rota, estava a China, onde localizava-se uma cidade comercial que o viajante muçulmano Ibn Batuta nos descreveu como sendo “a maior que meus olhos viram em toda a terra, com uma extensão que equivale a uma caminhada de três dias”. Compunha-se de seis recintos protegidos por uma grande muralha exterior: bum viviam os judeus, os cristãos e os zoroastrianos, noutro, os muçulmanos.

Esta era uma época em que a China diminuíra seu isolamento em que os grandes juncos, que transportavam até 400 passageiros, freqüentavam os portos do sul da Índia, comerciavam com a África e, talvez, tenham chegado à Austrália. Entre 1405 e 1433, a “frota do tesouro”, enviada pelo almirante eunuco Cheng Hô, fez sete grandes viagens ao golfo Pérsico e até as costas da África. A “frota do tesouro” era um conjunto de navios de carga, de abastecimento e de defesa, que chegou a levar 28.000 tripulantes, com dimensões globais não superadas até o século XX. [...] Posteriormente, quando o comércio chinês retraiu-se, os contatos se realizaram nos portos das cidades comerciais da Malásia e da atual Indonésia [...], onde os produtos da China eram trocados com os levados pelos comerciantes muçulmanos, que controlavam o comércio desde a Índia até as costas orientais da África.

Entre o século XIV e o XVI, estes fluxos chegaram ao seu ponto máximo, num âmbito que estava dominado, em boa parte, pela cultura islâmica. Os negócios compreendiam, ainda, mercadorias de consumo comum – cobre, ferro, arroz, cavalos – transportadas em grandes embarcações que levavam, também, numerosos peregrinos muçulmanos que iam a Meca, hindus que se dirigiam a Benares, budistas em viagem ao Ceilão e, inclusive, cristãos asiáticos que iam à Etiópia, seguindo as pegadas de Santo Tomás.

Ao lado deste comércio marítimo, havia, na Ásia, rotas terrestres que não só relacionavam estes países entre si – a Índia com a China, por exemplo -, mas que cruzavam a Ásia central e chegavam até os portos do Mediterrâneo oriental (o Levante) ou do mar Negro, pelo caminho conhecido como “o da seda”, transportando muitos outros produtos e conduzindo, também, outras mercadorias ao Oriente (no século XIII, os mongóis não só importavam tecidos do Ocidente, mas instalaram artesãos muçulmanos na China para que produzissem brocados de ouro). Nos portos ocidentais – desde a colônia genovesa de Kaffa, no mar Negro, até Alexandria do Egito, visitada frequentemente por catalãos, italianos e franceses – podiam-se encontrar mercadorias de diferentes partes do mundo e escravos das mais distintas raças e religiões. Um viajante sevilhano, Pero Tafur, nos deixou uma descrição de Kaffa em 1435. Era uma grande cidade (duas vezes a de Sevilha, como nos disse) e muito próspera, dedicada ao comércio de escravos, de peles, de especiarias e de pedra preciosas. “Aqui, vendem-se” – disse Tafur – “mais escravas e escravos que em todo o resto do mundo.” Os cristãos tinham bula do papa para comprar e manter escravizados cristãos de muitas nações “para que não acabem em mãos de mouros e reneguem sua fé”.

Porém, estas relações entre Oriente e Ocidente não se limitaram ao caminho das caravanas pelas rotas dos desertos, mas assentavam-se em redes comerciais solidamente estabelecidas: nas colônias de armênios, instaladas nas cidades (desde Marselha ou Amsterdam até a China) ou, nos séculos XVII e XVIII, na diáspora dos comerciantes indianos no Irã (onde parece que chegaram a ser milhares), em Turan (a terra dos uzbekos) e na Rússia, com uma forte penetração em Astrakan e posteriormente em Moscou.

No que se refere à África, o que mais se assemelhou a um comércio intercontinental foi o das caravanas entre a zona ao sul do Saara, de onde vinha o ouro de Gana, e os portos do Mediterrâneo. Mais ao sul, na zona tropical, a falta de animais para conduzir carros e a própria estrutura do território impediam o desenvolvimento de importantes intercâmbios terrestres, exceptuando-se os que ocorriam entre o interior e a costa. Isto explica que o comércio se efetuasse entre a África oriental, que comerciava no Índico, e a ocidental, que o fazia no Atlântico. [...] As do Atlântico eram muito diferentes: numa primeira etapa, estiveram sob o domínio dos navegadores muçulmanos que trocavam os produtos do Saara pelos da Andaluzia e do sul de Portugal, até que a perda das costas ibéricas abriu este espaço marítimo aos portugueses primeiro e, depois, a outros comerciantes europeus que buscavam, sobretudo, o ouro de Gana, até que, desde o século XVII, a crescente demanda de mão-de-obra das plantações americanas converteu os escravos na mais importante das exportações africanas (desde o final do século XIX, depois da proibição do “tráfico”, passaria a ser o azeite de coco e o amendoim). Em troca dos escravos africanos, recebiam, sobretudo, tecidos, artefatos metálicos, armas e bebidas alcoólicas. Esta importações, contudo, nunca alcançaram um volume que afetasse o desenvolvimento econômico africano, nem positiva nem negativamente, sendo que esta situação não se alterou até a conquista colonial. É a partir deste momento que se pode falar de uma situação de dependência que se prolonga até o presente. A África desempenhou um importante papel no surgimento do mercado mundial que a Europa configurou a partir da área do Atlântico, porém dele não se beneficiou.

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 145-151.

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