"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

"Classes perigosas" e polícia

Uma cena na União Westminster, (workhouse), 1878,  Sir Hubert von Herkomer

Uma sociedade que teme as classes subalternas, desconfia sobretudo dos pobres. Na Idade Média, a pobreza era considerada uma virtude; porém, desde o século XVII, começou-se a vê-la como um perigo social. Na maior parte dos países da Europa ocidental, produziu-se o que se chamou "a grande reclusão". Na França, encerraram-se os pobres hospitais gerais, onde rezavam e trabalhavam. Na Holanda, eram anunciados para alugar. Na Espanha, eram enviados forçadamente para remar ou trabalhar na marinha real, quando aptos (sendo que, para isso, não era necessário haver cometido outro delito além de ser pobre). Na Inglaterra, criou-se um sistema de leis dos pobres que se subordinavam à assistência da comunidade, que podia levar o pobre a uma workhouse ou "casa de trabalho", suja e triste, onde realizava tarefas irracionais e inúteis. O guarda da workhouse podia alugá-los a quem os quisesse, embolsando seu soldo em troca da manutenção, de maneira que só os que eram realmente inúteis ficavam internados. Na workhouse seria experimentado o tipo de controle disciplinar do trabalho próprio da fábrica, que seria sua filha direta. Em 1834, a nova lei dos pobres limitava a assistência aos velhos e aos inválidos, determinando que qualquer homem fisicamente apto devia ser obrigado a trabalhar na workhouse, onde as condições eram muito piores que as de trabalho de rua, com a intenção de que só fossem procuradas em caso de extrema necessidade. A trilogia das instituições "domesticadoras" da nova sociedade industrial britânica era integrada pela workhouse, pela fábrica e pelo cárcere, às quais se acrescentaria, mais tarde, a escola. 

Um grupo de crianças na Crumpsall Workhouse, 1895-1897

Na França, o sistema repressivo do Antigo Regime estava integrado pelos bôpitaux généraux, pelos dépots de mendicité e pelas prisões de mulheres. Os bôpitaux tinham uma função mista de prisão, hospital e asilo. Nos dois maiores de Paris, Bicetre para os homens e Salpetrière para as mulheres, havia ao mesmo tempo presos e sifilíticos, mesmo que os presos estivessem numa parte vigiada. Os dépots de mendicité acolhiam pobres e os tratavam mal. Uma mostra da função social que a repressão tinha na França - e uma prova de sua aceitação social - nos dão as "lettres de cachet", por meio das quais o rei, a pedido dos familiares, prendia um homem ou uma mulher de vida irregular no cárcere, com o fim de corrigi-lo, sem investigação preliminar ou julgamento. Anteriormente, acreditava-se que este era um sistema empregado exclusivamente pelas boas famílias, que enviavam os filhos desencaminhados à Bastilha - onde foi parar Sade, por exemplo: porém, verificou-se que inclusive os pobres costumavam utilizá-lo para prender os parentes doentes.

Enquanto os franceses começaram, com Napoleão, a organizar uma polícia encarregada da manutenção da ordem pública, os ingleses tentaram conservar o velho sistema repressivo, que era mais barato e parecia respeitar melhor a liberdade privada. O código sanguinário inglês de princípios do século XIX, com a multiplicação dos delitos que podiam ser castigados com a morte, seria a última tentativa de alternativa repressiva "liberal" e antiestatal.

Porém, desde meados do século XVII, ficava evidente que o Estado britânico era incapaz de conter os delinquentes. O contrabando, estimulado por taxas muito elevadas, era praticado com uma frota de 120 grandes embarcações (que levavam até 100 homens e 14 canhões) e de duzentas menores, com a colaboração de grupos de homens armados que asseguravam o desembarque, enquanto que os funcionários assistiam a tudo, impotentes. No século XVIII, Londres era uma cidade sem lei, onde florescia o crime e onde a captura de delinquentes se confiava aos "caçadores de ladrões" profissionais. Tão frequentes eram os roubos que Jonathan Wild montou um negócio em grande escala: assessorava os ladrões, tinha bandos inteiros a seu serviço, liberava da prisão e da execução quem ia ser condenado, fazendo-lhes o julgamento vendendo os produtos do roubo aos próprios roubados. "Aqui os roubados buscavam audiência do único que lhes podia prometer a restituição; aqui os ladrões se reuniam como trabalhadores numa fábrica para receber o pagamento pelo trabalho realizado". Começou a atuar em 1715; em 1717, promulgou-se uma lei que condenava à morte a quem se fizesse de intermediário entre as vítimas e os delinquentes, porém Wild continuou agindo até 1725, data em que foi condenado por haver cometido o erro de proteger um bandido. Nas cidades, havia, além disso, refúgios que permitiam manter-se fora do alcance da lei: quando, em 1723, suprimiu-se a prisão por dívidas menores de 50 libras, milhares de pessoas saíram do bairro de Londres onde haviam se refugiando e viram-se caravanas de carros, cavalos e gente a pé, como o êxodo de uma tribo de Israel.

Logo se percebia quais eram os riscos desta falta de controle da população urbana: em 1780, por motivo das revoltas de Gordon contra os católicos, Londres ficou durante duas semanas nas mãos dos assaltantes e saqueadores, até que se enviou o exército para estabelecer a ordem. Não é de admirar que, vencendo seus preconceitos "liberais", os ingleses começaram a criar um sistema policial "à francesa", semelhante aos que seriam criados em outros países da Europa depois de 1814, primeiramente com finalidades de política contra-revolucionária, porém, logo, dedicados a vigiar e combater o que a sociedade burguesa definira como as "classes perigosas", integradas principalmente pelos considerados marginais difíceis de integrar, de acordo com alguns estereótipos que pretendiam converter o delito num fato biológico, em criminosos natos, rostos repugnantes, vestimenta peculiar e, muito especialmente, este elemento sempre suspeitoso, por ser diferente, que é o estrangeiro.

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 285-288.

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