"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 1 de julho de 2012

As mulheres e a vida urbana no Brasil no início do século XIX


As mulheres da classe mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar. Eram treinadas para desempenhar o papel de mães e exercer as prendas domésticas. As menos afortunadas, viúvas ou membros da elite empobrecida, faziam doces por encomenda, arranjos de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, ajudando, assim, na educação da numerosa prole que costumava cercá-las.


Encontro de matronas, Debret

Tais atividades, além de não serem valorizadas, não eram tampouco bem vistas socialmente. As mulheres que as exerciam tornavam-se alvo fácil da maledicência masculina. Na época, era voz comum que a mulher não precisava, nem devia, ganhar dinheiro. As pobres, contudo, não tinham escolha senão garantir o próprio sustento. Eram, pois, costureiras e rendeiras, lavadeiras, fiandeiras ou roceiras.

Estas últimas, na enxada, ao lado de irmãos, pais ou companheiros, faziam todo o trabalho considerado masculino: torar paus, carregar feixes de lenha, cavoucar, semear, limpar a roça do mato e colher. As escravas trabalharam principalmente na roça, mas também foram usadas por seus senhores como tecelãs, rendeiras, carpinteiras, amas-de-leite, pajens, cozinheiras, costureiras, engomadeiras e mão de obra para todo e qualquer serviço doméstico.

Lavadeiras, Rugendas

Até o período em que se deu a independência, as mulheres viviam num cenário com algumas características constantes: a família patriarcal era o padrão dominante entre as elites agrárias, enquanto nas camadas populares rurais e urbanas, os concubinatos, uniões informais e não-legalizadas e os filhos ilegítimos eram a marca registrada. A importância das cidades variava de acordo com a função econômica, política, administrativa e cultural. O Rio de Janeiro, graças aos portugueses que seguiram D. João VI em seu exílio tropical, era a única cidade a contar com mais de 100 mil residências. A população urbana, contudo, crescia desde o século XVIII, alimentando forte migração interna (campo-cidade) e externa (tráfico negreiro e, depois desde 1850, imigração europeia).

É bom não perder de vista, no entanto, que, de acordo com vários viajantes estrangeiros que aqui estiveram na primeira metade do século XIX (Saint-Hilaire, Debret, Rugendas, Maria Graham), a paisagem urbana brasileira ainda era bem modesta. Com exceção da capital, Rio de Janeiro, e de alguns centros em que a agricultura exportadora e o ouro tinham deixado marcas - caso de Salvador, São Luís ou Ouro Preto -, a maior parte das vilas e cidades não passava de pequenos burgos isolados, com casario baixo e discreto, como São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.

Mesmo na chamada Corte, o Rio de Janeiro, as mudanças eram mais de forma que de fundo. A requintada presença da Missão Francesa pode ter deixado marcas na pintura, na ornamentação e na arquitetura, mas as notícias do jornal Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822) e Idade de ouro no Brasil (1811-1823), órgãos da imprensa oficial, ou mesmo a inauguração do Real Teatro de São João, onde artistas estrangeiros soltavam seus trinados, não eram suficientes para quebrar a monotonia intelectual. Além do popular entrudo, antecessor do nosso carnaval, e dos saraus familiares, o evento social mais importante continuava a ser a missa dominical.

Contra esse pano de fundo encontraremos mulheres da elite urbana, casadas com ricos homens de negócio, como, por exemplo, dona Ana Francisca Maciel da Costa [...], exemplo de matriarca vivendo na Corte às vésperas da independência. Seus salões foram descritos [...] como decorados com gosto francês, o que incluía papéis de parede e molduras douradas, além de móveis de origem inglesa e francesa. A neta da anfitriã, como boa filha da elite local, falava francês e fazia progressos na língua inglesa.

O exemplo era raro, queixava-se em 1813 John Luccock, afirmando que, pelo contrário, o pouco contato com a maioria das mulheres costumava desnudar sua falta de educação e instrução. Sabiam ler - comentava, amargo, só o livro de reza.

Debret confirmava o despreparo intelectual das mulheres de elite. Até 1815, e não obstante a passagem da família real, a educação se restringia a recitar preces de cor e calcular de memória, não incluindo a escrita.

A ignorância, segundo ele, era incentivada por pais e maridos, receosos da temida correspondência amorosa. Isso levou as brasileiras a inventar um código de comunicação baseado em desenhos de flores. Cada flor correspondia a uma ordem ou expressava um pensamento: o cravo significava ciúme, a rosa, paixão, o lírio, castidade etc. A observadora Maria Graham confirmou o mesmo uso entre senhoras de Pernambuco. Os namoros, na época, evoluíam segundo esse código.

Apesar dos cuidados com esposas e namoradas, não era exatamente seu pudor que impressionava os estrangeiros. Um visitante inglês tinha sobre a moral das brasileiras um juízo bem diferente daquele que se podia esperar de mulheres que teoricamente viviam escondidas dos homens: "Tanto as casadas quanto as solteiras era a mesma coisa, ou seja, imorais e ligeiras".

Em 1816, encontramos no Rio de Janeiro apenas dois colégios particulares para moças. Entre as jovens de elite, o costume era aprender, graças à visita de professores particulares, piano, inglês e francês, canto e tudo o mais que as permitisse brilhar nas reuniões sociais. É no Rio de Janeiro que vamos encontrar os "primeiros salões frequentados por damas". Elas aí se entretinham em serões e partidas noturnas de uíste (jogo de cartas), entretenimentos simples ou bailes e recepções. As danças se aperfeiçoavam com mestres entendidos, responsáveis pela capacidade das alunas em exibir passos e coreografias estudadas.

Além do professor de dança, outro modismo da época eram os cabeleireiros, franceses, de preferência, responsáveis por penteados ousados e cabeleiras ou perucas. É interessante observar que, nesse ambiente, as crianças eram comumente levadas aos bailes com seus pais [...].

Outra forma de lazer já praticado pelas mulheres eram os banhos de mar: escravas acompanhavam-nas com barracas, enquanto as sinhazinhas, em roupas de banho escuras e compridas, soltavam suas tranças para nadar. Senhoras e mucamas entravam juntas na água, onde passavam horas a espadanar. [...]

As mulheres de elite eram aparentemente muito bem vigiadas. Namoros se faziam na igreja, entre beliscões e pisadelas, ou às janelas, sob as quais os aspirantes a namorado colocavam-se rentes - era o chamado "namoro de espeque" -, murmurando palavras de amor. Observador, o viajante Carl Seidler relata: "A igreja é o teatro habitual de todas as aventuras amorosas na fase inicial... só aí é possível ver as damas, sem embaraços, aproximar-se discretamente e até cochichar algumas palavras. A religião encobre tudo, enquanto se faz devotamente o sinal da cruz pronuncia-se com igual fervor uma declaração de amor. Escravos encarregavam-se de levar e trazer recados dos amantes depois da missa".

DEL PRIORE, Mary et alli. 500 anos de Brasil: histórias e reflexões. São Paulo: Scipione, 1999. p. 10-13.

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