"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Era Vargas I: revoluções e golpes

Cena da Revolução de 1930. Ao centro, Getúlio Vargas. Foto de Claro Jansson

Para os leitores de jornais da época, o golpe que depôs Washington Luís e, consequentemente, impediu a posse de seu sucessor, Júlio Prestes, parecia ser um típico confronto entre chefes políticos da República Velha. Muitos achavam que o novo governo não duraria, pelo fato de a sustentação política da Revolução de 1930 ser bastante frágil. O movimento [...] havia desafiado o domínio de poderosas oligarquias, a começar pela paulista, formada por influentes fazendeiros e industriais [...].

Para enfrentar tal coligação de interesses, Vargas articulou em torno de si vários grupos que, desde o início da década de 1920, vinham dando mostra de descontentamento frente ao domínio oligárquico. A história política brasileira de 1930 a 1954 passa, então, a ser marcada por uma série de alianças, rupturas, aproximações e perseguições entre o novo presidente e os diversos segmentos da sociedade [...].

[...] em 3 de outubro de 1930 começa a revolução. Os primeiros levantes tiveram como base os estados em que a Aliança Liberal havia melhor se implantado. Assim, nas 24 horas após o início da rebelião, Rio Grande do Sul e Paraíba já estavam dominados. Nos dias seguintes, o mesmo ocorreria no Ceará, em Pernambuco, em Minas Gerais e no Paraná. Como foi possível tão rápido sucesso? Ora, paralelamente aos bandos de jagunços dos grupos dissidentes, os oposicionistas contavam com o fundamental apoio dos militares descontentes. Os políticos da Aliança Liberal, com habilidade, selaram um pacto com os jovens oficiais do exército. Para os tenentistas, a revolução parecia atender a certas expectativas: ela permitiria combater a política oligárquica, através de um governo centralizados, além de garantir a muitas vezes anistia aos militares que haviam participado das revoltas ocorridas entre 1922 e 1927.

Duas semanas após o início do movimento, já havia sido submetida parte do território paulista. A revolução avançava agora em direção ao Rio de Janeiro. A situação era de tal maneira favorável aos revoltosos que a cúpula do exército se apressou, ela própria, a depor [...] o presidente Washington Luís. Os generais davam assim um golpe dentro do golpe [...].

A partir dessa data tem início a presidência de Getúlio Vargas. Contudo, ela parecia destinada a durar pouco. Já nos primeiros dias, o novo presidente enfrentou forte oposição paulista. [...] Segundo os democratas paulistas, a finalidade do governo provisório era garantir a reforma política através da convocação de uma assembléia constituinte.

Apoiado nos velhos tenentistas e nos novos generais, Getúlio Vargas dava a entender que tal convocação abriria caminho para o retorno das oligarquias ao poder. Descontentando ainda mais o PD, Vargas escolhe um membro das fileiras tenentistas como interventor de São Paulo. [...] Esses políticos também articulam-se com grupos políticos do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, descontentes com os rumos do governo provisório. Nessa altura dos acontecimentos, Getúlio cede às pressões, convocando para breve a assembléia constituinte. [...] Em julho de 1932, os paulistas revelam do que seriam capazes para defender uma constituinte liberal: pegam em armas contra o governo. [...]

A denominada Revolução Constitucionalista, embora derrotada, alcançou parte importante de seus objetivos. No ano seguinte a seu término, além da confirmação da convocação da assembléia constituinte, os paulistas conseguiram influenciar na escolha do interventor local [...]. O mérito de Getúlio foi ter conseguido permanecer no poder. Sua situação, porém, era frágil. [...] O presidente teve de aceitar uma constituição de cunho liberal, que em muito restringia seu poder. [...]

É nesse contexto que o futuro ditador aproxima-se mais e mais do exército. A instituição, além de abrangência nacional, tinha o poder de fogo contra as oligarquias [...]. No entanto, as forças armadas continuaram divididas. Uma parcela dos antigos tenentes havia sido integrada ao governo provisório, outra parte permaneceu na oposição, radicalizando cada vez mais suas posições políticas. Exemplo disso foi Luís Carlos Prestes. No ano em que findou a revolta tenentista que levava seu nome - Coluna Prestes -, o Partido Comunista do Brasil, futuro PCB, começou a contatá-lo. Tal agremiação, nascida em 1922, era, em grande parte, resultado do impacto político da Revolução Russa. Pela primeira vez, o comunismo deixava se ser uma utopia distante [...] para se transformar em uma forma de governo [...].

[...] Entre 1917 e 1922, assiste-se à progressiva conversão de um grande número de anarquistas e socialistas brasileiros às concepções leninistas. [...]

Nesse contexto, a dissidência radical tenentista passa a ser vista como aliada em potencial do PCB, que, para selar tal aproximação, cria em 1929 o Comitê Militar Revolucionário. Apesar desses esforços, Prestes recusa-se inicialmente a se filiar ao partido. Porém, ao longo de 1930, sua posição política irá se alterar, a ponto de, no ano seguinte, rumar para o exílio em Moscou, de onde retornará como membro do PCB, em 1934. Junto a ele ingressam no partido, importantes lideranças do antigo movimento tenentista [...], além de uma massa silenciosa que permaneceu nos quartéis e que será protagonista do Levante Comunista ocorrido no ano seguinte.

Entre 1928 e 1935, observa-se, portanto, o surgimento, no interior do PCB, de uma esquerda de origem militar. Nessa última data, os comunistas brasileiros, acompanhando a tendência internacional do movimento, implementam uma política de frente popular, que, no Brasil, recebeu a designação de Aliança Nacional Libertadora (ANL). Tratava-se não só de uma aproximação com os grupos socialistas e nacionalistas, antiimperialistas e contrários ao nazi-fascismo, como também de uma tentativa de defesa das camadas populares frente à crise econômica de 1929. [...] Contudo [...] a política frentista da ANL apresentava desde seu início um forte desequilíbrio a favor dos comunistas. [...] O PCB [...] assumiu posturas cada vez mais radicais contra Getúlio Vargas, abrindo caminho para que fosse decretado, em julho de 1935, o fechamento de nossa primeira experiência de front populaire. Extinta a ANL, os comunistas [...] partem para o confronto com o governo federal. Em novembro de 1935 [...] os quartéis se levantam contra Getúlio Vargas. Em Natal, no Recife e no Rio de Janeiro, os conflitos acabam resultando em mortes de oficiais e soldados.

Com oportunismo, Getúlio Vargas explora o novo momento político. A quartelada serve de pretexto para perseguição não só de comunistas como também de grupos que não pertenciam à ANL, mas faziam oposição ao governo; entre eles havia anarquistas remanescentes, sindicalistas independentes e até mesmo liberais. Mais importante ainda: a revolta consolida a aliança entre o presidente e as forças armadas. [...] Os comunistas passaram a ser vistos como inimigos viscerais, enquanto isso, as fileiras do Exército são alvo de um escrupuloso expurgo: cerca de 1.100 oficiais e praças são expulsos em razão de posições políticas. [...]

Apoiado nas forças armadas, Vargas também prepara caminho para decretar o Estado Novo. Em 1937, faz veicular pela imprensa a existência do Plano Cohen, suposta conspiração comunista, que acabou servindo de justificativa para o golpe. Tal era o plano sabidamente falso, de autoria de grupos de extrema-direita, que nele previa-se, por exemplo, o desrespeito sistemático "à honra e aos sentimentos mais íntimos da mulher brasileira", ou seja, o estupro generalizado.

Sob a alegação de que uma nova intentona estava sendo tramada, Getúlio revoga a constituição sancionada três anos antes. O golpe, porém, contrariava importantes interesses políticos, que levariam, alguns anos mais tarde, o Estado Novo ao colapso. Para 1938 haviam sido previstas eleições presidenciais. Portanto, no momento em que Getúlio impunha seu governo ditatorial, três candidatos já haviam sido lançados: Armando de Salles Oliveira, congregando facções políticas paulistas, gaúchas, assim como segmentos de oligarquias baianas e pernambucanas; José Américo de Almeida, representando grupos políticos de Minas Gerais, Paraíba e Pernambuco, além de facções oligárquicas de São Paulo, Bahia e Rio Grande do Sul; e Plínio Salgado, chefe da Ação Integralista Brasileira, versão nacional do fascismo europeu.

Os dois primeiros candidatos articularam protestos na Bahia, em Pernambuco e no Rio Grande do Sul [...]. O candidato integralista tem uma posição bem diversa, procurando uma aproximação com o ditador, o que não causava surpresa uma vez que várias características do Estado Novo lembravam as formas de governo nazi-fascistas. A tônica anti-semita era uma delas. O Plano Cohen, por exemplo, era muitas vezes definido como uma conspiração judaico-comunista. Mais importante ainda do que a retórica racista eram os objetivos do golpe. Previam-se, por exemplo, o fechamento do congresso, a extinção dos partidos políticos e a criação de um sistema centralizado de poder. Em outras palavras, era a ditadura contra as oligarquias, a ditadura contra os comunistas, a ditadura contra os democratas liberais.  Contudo, a tentativa de aproximação com o ditador não só falhou, como também não impediu o fechamento da Ação Integralista Brasileira. Tal ação levou os integralistas a implementarem, em 1938, um novo golpe contra Getúlio. Seu fracasso permitiu ao ditador fazer outros expurgos nas forças armadas, excluindo agora os segmentos tenentistas que haviam se encaminhado para o radicalismo de direita. Desta forma, entre 1937 e 1945, Getúlio Vargas, com a capa institucional que lembrava os governos fascistas europeus, torna-se um caudilho em escala nacional. [...]

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 311-316, 318-319.

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