"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 15 de maio de 2012

Um viajante vai a pé da Europa até a Ásia

Museu Santa Sofia, Istambul

Depois de um pouco mais de três horas de vôo, um viajante francês vindo de Paris desembarca em Istambul (antiga Constantinopla), uma cidade bem grande. Ele está na Turquia e na Europa. Em Istambul, atravessa um braço de mar estreito ao transpor uma ponte de algumas centenas de metros, e o viajante ainda está na Turquia, mas não está mais na Europa, e sim na Ásia. Ele passou a pé, em alguns minutos, da Turquia da Europa para à Turquia da Ásia.

De Istambul, nosso viajante vai até a Rússia. De Moscou, dirige-se de avião ou de trem, em poucas horas, até a cadeia de montanhas situada a leste, os montes Urais. Ele começa a subir as montanhas. Quando sobe, ele está na Rússia e na Europa. Quando desce, ainda está na Rússia (mesmo se essa parte da Rússia chame-se Sibéria), mas não está mais na Europa, está na Ásia. Ele passou a pé, em poucas horas, da Rússia da Europa para a Rússia da Ásia.

O que é a Europa? Um continente - respondem os geógrafos -, isto é, um conjunto massivo de terras bem definido por fronteiras naturais, em geral por mares. É o caso da África, da América, da Oceania - mesmo que esta seja composta de muitas e muitas ilhas, grandes, como a Austrália, ou pequenas, como o Taiti. Mas a Europa, de onde se vai a pé de forma mais ou menos fácil até a Ásia, é um continente como os outros?

Em Istambul, nosso viajante ouviu falar turco, bebeu café em um copo ou em uma panelinha com a borra do café não coado no fundo; comeu espetinhos de carne, principalmente de carneiro; viu edifícios religiosos com cúpulas e com torres altas - os minaretes - de onde, em determinadas horas, um homem, segundo as regras da religião muçulmana, chama para a oração; e ele tirou seus sapatos para visitar a mesquita. Percorreu, maravilhado, os imensos mercados compostos de pequenas lojas onde admirou, especialmente, os tapetes, as jóias, os objetos de couro e respirou o odor inebriante das ervas, das especiarias e dos perfumes com cores cintilantes.

Na Rússia, nosso viajante ouviu falar russo; deram-lhe um álcool muito forte para beber, a vodka, e, várias vezes durante o dia, uma infusão de chá em um grande bule de metal, o samovar; ele comeu, em vez de pão, crepes frescos de farinha, os blinis; entrou nas igrejas onde aconteciam longas cerimônias em uma liturgia com belos cantos e padres vestidos com ornamentos brilhantes. Aquilo se parecia com os ofícios religiosos católicos (mas, antes de entrar, mesmo permanecendo com os seus sapatos, ele tirou o seu chapéu), porém o cristianismo da ortodoxia grega era diferente, e uma grande parte dos ofícios não acontecia na presença dos fiéis: os padres oficiavam atrás de uma divisória revestida de imagens piedosas coloridas, a iconóstose. Enfim, disseram-lhe que, se fosse permanecer durante o inverno, deveria se prevenir contra o frio e comprar principalmente um belo chapéu de pele, uma chapka. E ele pagou-a na moeda do país, em rublos.

Nosso viajante foi em seguida até a Grã-Bretanha. Seu avião de Paris a Londres levou menos de uma hora e, caso volte a Londres, ele poderá agora ir de trem pelo túnel sob o Canal da Mancha em aproximadamente três horas. Doravante, portanto, a Grã-Bretanha não é mais uma ilha. Ela está ligada ao continente europeu por esse túnel, o que, geograficamente, torna-a muito mais europeia. Em Londres, serviram-lhe com frequência pratos com um molho de menta e ele apreciou o café-da-manhã original, o breakfast, mais farto (muitas vezes servido com ovos e bacon) e mais saboroso do que o café-da-manhã europeu, dito continental. Ele ficou surpreso quando viu que os automóveis andam na faixa da esquerda e não na da direita, como nos outros países da Europa (menos na Irlanda, antiga possessão britânica) e que as distâncias não são medidas em quilômetros, mas em milles; uma mille vale 1,609 quilômetros. Alguns amigos ingleses o levaram para ver uma partida de seu jogo preferido, o criquete, que se joga com um taco, uma bola e uma baliza. Este jogo, que não é jogado em qualquer outro país europeu, lhe pareceu bem estranho. A religião praticada pela maioria dos ingleses é uma variante da religião protestante, originária de uma divisão (cisma) do cristianismo no século XVI. Essa religião se assemelha muito ao catolicismo, mas não reconhece o papa como chefe; a Igreja Anglicana é uma igreja independente, e, uma coisa bem estranha para um francês e para a maior parte dos outros europeus, o soberano (o rei ou a rainha) é o seu chefe. Outra diferença surpreendente, no comando da Grã-Bretanha não há um presidente da República, mas um rei ou uma rainha. E, em todo lugar, evidentemente, ele pagou com a moeda do país, a libra-esterlina, e ouviu falar uma outra língua, o inglês.

Nosso viajante francês também poderia ir facilmente aos outros países europeus, nenhum deles é muito distante. No momento, vamos nos contentar em acompanhá-lo até Roma, na Itália. Primeiro ele ficou impressionado com o número de igrejas, de padres e de religiosos. É que Roma é tanto a capital da República Italiana quanto a de um pequeno Estado independente realmente extraordinário que se reduz a uma pequena porção da cidade de Roma, o Vaticano. Este Estado tem em seu comando um chefe religioso, o papa, que é o chefe da Igreja Católica. Fora do Vaticano, o papa é o chefe espiritual de todos os católicos, inúmeros na Europa, principalmente na Europa do Sul, e no mundo. Por toda a Itália, nosso viajante foi convidado em várias ocasiões a tomar café em bares onde um excelente café, bem concentrado, era servido em pequeníssimas xícaras, ele é produzido por brilhantes máquinas que já espalharam pela Europa esse café bem "forte", o espresso. Ele também comeu muita massa e lhe ensinaram a comê-la pouco cozida, al dente. Viu mais monumentos e obras de arte do que nos outros países da Europa - mesmo na França e na Espanha, que possuem, no entanto, muitas obras. Observou que aqui se fala outra língua, o italiano, mas esta tem semelhanças com o francês. Por exemplo, os dias da semana: em italiano se diz lunedi (lundi), martedi (mardi), mercoledi (mercredi), giovedi (jeudi), venerdi (vendredi), sabbato (samedi), domenica (dimanche). Ele se lembrou que o francês e o italiano fazem parte de um conjunto de línguas europeias vizinhas, as línguas românicas (francês, occitiano, italiano, catalão, espanhol, português, romeno), que provém de uma antiga língua falada numa parte importante da Europa, o latim.

Dessa forma, ele visitou, em menos de cinco horas de vôo (e muitas vezes, excetuando-se a Rússia, em menos de três horas) ou em algumas horas de trem, países onde as pessoas falam línguas diferentes, não comem e não se vestem da mesma maneira, praticam religiões diferentes e se dizem turcos, russos, ingleses, alemães, noruegueses, poloneses, italianos ou espanhóis, mas quase nunca europeus. E, no entanto, eles são europeus. Então, nosso viajante se pergunta: A Europa existe? Ser europeu, o que isso quer dizer?

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 11-17.

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