"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 21 de março de 2012

O olho de vidro da ciência: a revolução científica


A ciência estava a todo vapor na Europa. Deixando de engatinhar, começou a andar e, em seguida, a correr. Continuou a correr por algum tempo antes de ultrapassar a China na maior parte das áreas, mas, em 1520, já havia fortes indícios de que estava ganhando velocidade. A mesma imprensa que expôs Lutero explicava as últimas descobertas da ciência. A página impressa viajava com facilidade, ao contrário dos típicos estudiosos europeus. A maioria dos cientistas famosos da Europa de 1550 nunca chegara a conhecer a maioria de seus contemporâneos estrangeiros cara a cara, mesmo quando vivia apenas algumas centenas de quilômetros de distância.

Novos avanços vieram do estudo do sol, da terra e das estrelas. Nessa área, o grande descobridor foi Nicolau Copérnico, um estudioso polonês, que usou toda a sua capacidade de medir e observar, bem como aquela atividade pouco comum, conhecimento como "pensamento", para provar que o sol era o centro do universo. Com isso, destronou o planeta terra, uma vitória tão louvável que parecia inicialmente desafiar a Bíblia e toda a essência do cristianismo, que via a terra como o centro do universo.

Copérnico começou a destronar a terra por volta de 1510, logo após Colombo e suas viagens de descobrimento terem ampliado o mapa. A vitória de Copérnico, entretanto, não estava assegurada, mesmo depois de sua morte em 1543. De certa forma, ainda hoje sua visão é só parcialmente aceita. A voz do povo e a imagem poética ainda indicam que a terra é o centro do universo. Todas as manhãs, aos olhos da mente, é o sol que nasce e, não a terra que se põe.

A ênfase nas medidas e na observação, de fato um método científico completamente novo, conduziu esses avanços. A anatomia ganhou com a nova ânsia das escolas de medicina italianas em dissecar o corpo humano, em vez de confiar no que os antigos estudiosos gregos haviam escrito. A autópsia do corpo do Papa Alexandre V chegou a ser sancionada, após sua morte misteriosa em 1410. O jovem e brilhante médico, Vesalius, originário de Flandres, frequentemente dissecava corpos e, na Universidade de Pádua, ensinava suas descobertas arrojadas, na década de 1540, reescrevendo assim os antigos livros de anatomia.

Laboratório de um alquimista, 1570,Giovanni Stradano


A onda de descobertas, feitas em várias frentes científicas, era o trabalho de centenas de curiosos que passavam seu tempo como cientistas, observadores de estrelas, médicos e religiosos que dispunham de um pouco de tempo para gastar. Muitas eram pessoas de vários talentos e habilidades que estavam decididas a resolver um emaranhado de charadas intelectuais. Assim, Isaac Newton, que foi aclamado em sua vida como o maior de todos os físicos, pesquisou teologia, química, astrologia, astronomia e a fabricação de telescópios, bem como as leis do movimento e da gravidade. Nos séculos XVI e XVII, cientistas famosos raramente eram pesquisadores com dedicação exclusiva, e raramente viviam vidas longas. Isaac Newton foi uma exceção pelo fato de ter passado dos 80 anos de idade [...].

Um avanço na ciência, segundo dizem alguns observadores, nada mais é que a aplicação do bom senso, mas várias teorias pareciam desafiar o bom senso vigente à época, tanto a versão espiritual quanto secular desse bom senso. Por isso, não eram aceitas prontamente. Muitos descobridores sabiamente hesitavam em tornar público o que haviam descoberto, enquanto os descobridores de hoje se entregam à tentação de logo recorrer à imprensa, sem um dia de atraso. [...]

Enquanto a imprensa disseminava muitas das descobertas, os sacerdotes e párocos se sentiam tentados a impedi-los. Os líderes religiosos opunham-se ou mostravam-se extremamente desconfiados com várias ideias revolucionárias da ciência. A própria ideia de que as leis da natureza, até então desconhecidas, agiam no universo e que leis semelhantes poderia ser encontradas agindo sobre os seres humanos, assim como no mundo físico, era um perigo em potencial para a religião que pregava que Deus, soberano em sabedoria e em conhecimento, presidia sobre cada canto do mundo e, portanto, podia suspender qualquer lei da natureza e operar milagres. [...]

A revolução científica foi um avanço maravilhoso na forma em que o mundo era visto. Antes de 1550, enquanto o trabalhador com prática em metais foi responsável por avanços tais como o relógio mecânico e a imprensa, foi o trabalhador com prática em vidro que facilitou descobertas futuras como o microscópio e o telescópio. O vidro tornou-se o olho transplantado do cientista possibilitando ver o invisível.

Os antigos egípcios produziram os primeiros recipientes de vidro, ocos por dentro. Os sírios, por volta de 200 a.C., inventaram o maçarico para soprar vidro, dando-lhes o formato de recipientes arredondados e com paredes finas. Os romanos manufaturavam um vidro rudimentar, normalmente um pouco turvo, mas que quando bem trabalhado era transparente o suficiente. Em Veneza, o Silicon Valley (ou Vale do Silício) de sua era, os antigos métodos romanos de fabricação de vidro foram aperfeiçoados. Os vidreiros de Veneza tornaram-se tão numerosos, e o fogo que queimava em seus locais de trabalho apresentava um perigo tão grande de se alastrar por em toda a cidade que, em 1291, o governo os deslocou para a ilha de Murano, próxima ao local. Os primeiros espelhos feitos com nítidez suficiente foram produzidos em Veneza, por volta de 1500, e os habitantes dessa cidade mantiveram em segredo seu novo processo de manufatura por mais de 150 anos. Os espelhos fizeram o máximo que puderam para realçar a reputação de Veneza como o lar do luxo, da vaidade e, talvez, dos produtos femininos imorais: uma reputação já criada pelas luvas e leques de Veneza, e os calções bordados de Veneza, peças bem justas do vestuário usadas para encobrir as pernas.

Uma revolução da ciência também se encontrava nas mãos dos vidreiros. O poder que o vidro curvo tem de aumentar os objetos observados já era conhecido mesmo antes da civilização grega: mas, lentes de vidro específicas para uso em óculos e como lentes de leitura só foram inventadas por volta de 1300. Óculos preservados no Deutsches Museum, em Munique, datam de 50 anos depois, e já era possível que os médicos, exercendo sua penosa obrigação durante a Peste Negra, colocassem seus óculos para examinar de perto a pele e a língua das vítimas. Quando os livros impressos entraram na moda, a demanda por óculos aumentou, principalmente entre homens e mulheres que desejavam ler sob a luz fraca do inverno do norte da Europa.

O poder esplêndido do vidro foi drasticamente revelado na cidade litorânea de Middelburg, na Holanda. Em 1608, Hans Lippershey, um fabricante de óculos, começou a construir telescópios de bastante utilidade. Para o espanto daqueles que empregavam o telescópio, eles podiam ver claramente uma pessoa a 3 quilômetros de distância. A ideia, mas não o telescópio, chegou a Galileu Galilei, que ensinava matemática em Pádua, no norte da Itália. Fazendo sua própria versão do que ele chamou de "vidro espião", maravilhou-se ao descobrir que podia aumentar a imagem em três vezes. Moendo suas próprias lentes de vidro, ele conseguiu uma proporção de aumento de 8 vezes e, depois, 32 vezes. Na cidade próxima de Veneza, mercadores e donos de navios levaram o excitante telescópio para o alto das torres e, olhando para o mar, puderam ver navios que antes eram invisíveis a olho nu.

O telescópio melhorado de Galileu estava alcançando no céu o que Colombo e Magalhães fizeram ao navegar pelos mares. Ele estava mapeando novos mundos. Através de seus telescópios, feitos principalmente de vidro de Veneza, Galileu inspecionou a lua, a qual descreveu como "a visão mais bonita e mais prazerosa que existe". Detectou também o que ninguém havia visto antes, as crateras da lua e sua superfície acidentada. Foi ele quem primeiro viu as manchas do sol e descobriu que a Via Láctea consistia de estrelas.

Fólio de Galileu, onde retrata as fases da Lua

Ele também chegou à mesma conclusão de Copérnico: a terra não era o centro do universo a quem quase todos os corpos celestes faziam a corte. Essa visão trouxe profundas implicações para certas frases do Antigo Testamento que Galileu denunciou como sendo escritas pelos ignorantes para os ignorantes. A igreja ergueu sua mão ao alto contra ele, em 1616, e ergueu ainda mais após ele ter persistido em suas teorias. Galileu passou os últimos oito anos de sua vida sob prisão domiciliar em sua pequena fazenda perto de Florença.

Ao telescópio, os vidreiros holandeses e italianos acrescentaram o microscópio. Anton van Leeuvenhoek, que vendia materiais de costura e roupas na cidade holandesa de Delft, tornou-se um mestre na fabricação de microscópios. Com uma ampliação de pelo menos 270 vezes, seus microscópios viam mais do que jamais tinha sido visto pelos olhos humanos. Em 1667, pela primeira vez, ele descreveu com precisão um espermatozóide e as células vermelhas do sangue. Seu microscópio possibilitou quebrar vários velhos mitos: que a pulga nascia da areia e que a enguia era chocada pelo orvalho. Enquanto isso, na Inglaterra, Robert Hooke, enquanto olhava os tecidos das plantas ao microscópio, inventou uma palavra fundamental: "célula". Na época, ainda não se sabia que todas as plantas e animais consistiam de células.

O microscópio abriu os olhos da botânica e da zoologia. Exatamente na mesma época em que a exploração de novas terras multiplicava as plantas e animais conhecidos, o botânico e físico sueco, Carolus Linnaeus, ou Lineu, aperfeiçoou seu método que, em breve, tornou-se o método de todo o mundo, o de classificar todas as coisas vivas, dando-lhes dois nomes em latim, um especificando o gênero mais amplo e o outro, a espécie em particular.

O que Lineu fez pela classificação de plantas, outros cientistas, ao sul dos Alpes, alcançaram na classificação do tempo. A reforma do calendário foi um processo vagaroso. No auge de Roma, Júlio César e seus consultores haviam reformado o calendário, abandonando o ciclo da lua e voltando ao ano solar. O ano solar se estendia por 365 dias, cinco horas e 48 minutos e três quartos, mas as horas que sobravam criavam uma dificuldade para o novo calendário. Júlio César adotou uma solução conciliatória sensata. Seu calendário, mais tarde chamado de juliano em sua homenagem, admitia, por questão de simplicidade, que o sol completava seu percurso anual em 365 dias e um quarto. Dessa maneira, o ano somava 365 dias para cada primeiro, segundo e terceiro ano, e 366 dias para cada quarto ano, ou ano bissexto.

César morreu bem antes de a dificuldade inerente de seu calendário se tornar proeminente. O fato estranho era que seu calendário, a cada século consecutivo, atrasava um pouco. Na verdade, a cada ano, o calendário perdia 11 minutos e em seus 1000 anos iniciais, ele perdeu aproximadamente 7 dias. Interferia, também, com a determinação do Domingo de Páscoa, um evento desconhecido da época de Júlio César, mas que veio a ter profunda importância mais tarde.

Finalmente, em 1582, o Papa Gregório XIII agiu decisivamente. Usando os cálculos do astrônomo e médico de Nápoles, Luigi Guiraldi, o papa anunciou sua solução. Exatamente naquele ano, ele eliminaria os 10 dias que iam de 5 a 14 de outubro. Em suma, o calendário seria atualizado com o risco da pena de uma caneta. O futuro também seria controlado com a mesma decisão. Como corretivo a longo prazo, o calendário gregoriano adotou o ano bissexto em 1600 e em 2000, porém não nos anos intermediários de 1700, 1800 e 1900.

Aqueles que viviam na Espanha, Portugal e Itália iriam discutir por muito tempo o memorável outubro de 1582. Dez dias, para seu espanto, simplesmente desapareceram de sua vida. Alguns meses depois, a França e vários estados católicos da Alemanha perderam seus 10 dias. Os países protestantes, no entanto, não tinham certeza se deveriam seguir uma reforma iniciada por um papa. A Inglaterra continuou a seguir seu calendário diferente do que prevalecia na França e Espanha católica. Quando chegou o dia de Natal na Inglaterra, já era janeiro do outro lado do Canal da Mancha. Na Alemanha, somente duas cidades, a poucos quilômetros uma da outra, seguiam um calendário diferente, baseadas no fato de estarem situadas num estado católico ou luterano.

Quando a Inglaterra finalmente adotou esse novo calendário, onze dias não vividos tiveram de ser apagados. Assim, em 1752, seu calendário pulou durante a noite de 2 de setembro para 14 de setembro, uma mudança que causou desordem em muitos cantos e consternação em outros. Em Londres, uma multidão sob um estado compreensível de confusão pôde ser ouvida gritando: "Devolvam-nos nossos onze dias". A Rússia e várias outras nações da igreja oriental ou ortodoxa continuaram a seguir o antigo calendário. A Rússia acabou esperando até o ano de sua revolução comunista, em 1917, para adotar o que o papa e a Itália haviam começado mais de três séculos antes.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 164-169.

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