"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Escravos na América espanhola

O documento mais antigo provando a existência de um carregamento mercantil de negros africanos introduzidos na América espanhola como escravos é de 1518. Antes disso, eles vieram como empregados domésticos dos amos espanhóis, trazidos clandestinamente, ou pela própria Coroa. A última data de entrada de negros escravos, e sobre a qual há provas contundentes, é de 1873 em Cuba, há pouco mais de cem anos.

Quantos negros vieram para o Novo Mundo? Sem muito rigor, há estimativas de 1. 552.000 negros. Essa cifra é menor que a calculada para o Caribe britânico (1.665.000) e Antilhas francesas (1.600.000) e muito mais baixa que a estimada para o Brasil: 3.646.000.

Outra pergunta interessante: quantos negros, capturados na África, foram embarcados? Vários autores dão números diferentes, mas há consenso em que teriam oscilado em torno de 12 milhões. De qualquer maneira uma coisa é certa: milhões morrem na travessia do Atlântico.

Cabe indagar também que tipos de empresas utilizam mais escravos. Ninguém discute que foram - e isto é válido para toda América, não só espanhola - em primeiro lugar, as plantações tropicais. O estudioso cubano Moreno Fraginals estima que as plantações de açúcar absorveram 65% dos escravos. Outras plantações tropicais, mais uns 15%. Isto é, as plantações teriam absorvido 80% da mão-de-obra escrava.

Pode-se afirmar, então, que a demanda europeia de açúcar, cacau, tabaco, café, algodão, etc., significou, para dois continentes uma gigantesca tragédia social e, adicionalmente, para a África um desastre demográfico. Além disso, no continente africano, a caça de escravos desarticulou, desagregou e corrompeu inúmeras organizações sociais.

O Abade Raynal, famoso autor do século XVIII que criticou severamente a escravidão e antecipou o surgimento de um Espártaco negro, escreve em uma de suas páginas mais contundentes: "Faz mais de um século que a Europa incorporou as mais sãs e sublimes máximas de moral. Em escritos imorais ficou estabelecida a maneira mais próxima à fraternidade entre os homens. Nós nos indignamos com as crueldades civis e religiosas de nossos terríveis antepassados e desviamos nosso olhar desses séculos de horror e sangue [...]. Só que o fatal destino dos desgraçados não nos interessa. São tiranizados, mutilados, queimados, apunhalados e nós ouvimos dizer isto friamente e sem emoção. Os tormentos de um povo ao qual devemos nossas delícias, não chegam ao nosso coração". [...]

Em torno de 1770, Raynal calcula que as Américas receberam de oito a nove milhões de negros; desses, restaria com vida um milhão e meio. As cifras podem ser discutidas; a tragédia que revelam é indiscutível.

O que acontece na África quando a Espanha autoriza a introdução de negros nas suas colônias? No norte, o sultão otomano de Constantinopla é soberano do Egito e do litoral berberesco do Mediterrâneo. Há um Marrocos islâmico [...] resistente ao assalto dos espanhóis e portugueses, donos já de várias de suas localidades litorâneas. Ao redor do continente, os portugueses estabeleceram uma série de posições fortificadas que vai do Cabo Verde até Zanzibar. O interior do continente é um mundo relativamente misterioso para os europeus, no qual existem várias monarquias negras e inúmeras sociedades tribais. Um império [...] está situado ao longo do rio Níger. Fundado por um dissidente do Islão [...] consegue dominar uma quantidade de povos existentes entre o Daomé e a Guiné [...]. Vindo de Gao, rio acima, se apodera de Tumbuctu e Gana. [...]

Em Gao há um bairro para os muçulmanos árabes e outro para os negros, que são a maioria da população. Em Tumbuctu [...] negocia-se com Fez, Kairuan, Cairo e, inclusive Gênova e Veneza. Pelo Império de Sonrai passam as caravanas que levam às costas do Mediterrâneo o sal, cobre, ouro e escravos que são consumidos pelos mundos russo, muçulmano e cristão. [...] a tarefa dos negreiros é facilitada. Em troca de bugigangas dadas aos chefes tribais, recebem abundante mercadoria humana. Na mesma nave que trazem os presentes, transportam os escravos à América; daí retornam à Europa levando açúcar, rum e outros produtos. Esse comércio triangular [...] gera lucros fabulosos [...].

[...] enquanto os árabes veteranos do tráfico de carne humana, continuam oferecendo escravos aos mercadores do norte e leste da África, os europeus os capturam em Angola, Guiné, Sudão, Senegal, Gâmbia, etc. Cidades como Goa e Tumbuctu, antigamente bastante povoadas [...] ficam despovoadas e tornam-se aldeias quase sem vida. [...]

[...]

Os negros trabalham principalmente na produção de minérios preciosos e nas plantações. O trabalho nas minas, extremamente duro, consome rapidamente a mão-de-obra, de modo que os espanhóis preferem os índios, cuja morte prematura não lamentam, pois não pagavam nada por eles. O escravo, ao contrário, é um instrumento de produção no qual foi investida uma certa soma de dinheiro: será utilizado nessa tarefa somente quando absolutamente necessário. Em outras palavras, quando não houver mais índios para desempenhar tarefa tão bruta.

Frente à terrível mortandade dos índios nas minas de Potosi, a autoridade sugere a introdução massiva de escravos negros. [...] a terrível exploração do trabalho indígena não é apenas dada pelo caráter desumano e a cobiça: a rudimentar tecnologia da mineração [...] está baseada no esforço físico de pessoas que respiram um ar viciado, quase sem oxigênio, frequentemente carregado de gases letais. Acrescente-se a isso a péssima alimentação e proteção.

Em regiões como Nova Granada (Colômbia) utiliza-se quase que exclusivamente negros na extração de minérios, pois não há índios disponíveis.

Na área espanhola do Caribe (mas também nas colônias inglesas, francesas e holandesas) emprega-se a escravidão na agricultura comercial: plantações com grande inversão de capital [...], cujo produto é destinado quase que exclusivamente à exportação. [...]

[...]

Existe a escravidão doméstica, sinal de status social para o proprietário. [...]

[...]

Nas fazendas de criação de gado e, em geral, no trabalho com o gado, utiliza-se muito menos escravos [...].

Nos engenhos açucareiros cubanos, os donos permitem que os escravos trabalhem um pedaço de terra para obter seu alimento; porém, isto é permitido somente quando a produção se detém para repor peças gastas das máquinas, fazer trabalhos de limpeza, etc. É uma maneira de evitar a ociosidade ocasional e forçada, utilizando a mão-de-obra na atividade produtiva. [...]

Em São Domingos, onde o trabalho escravo é utilizado na fazenda [...], a produção de alimentos não é uma tarefa marginal como o é na plantação cubana. [...] O escravo trabalha para o amo e para si próprio. [...]

[...]

O ritmo de reprodução biológica do escravo é muito lento; em todo caso, menor que as necessidades de reposição de mão-de-obra. Na América espanhola não há nada parecido com os criadores de escravos da Virgínia e Carolina do Sul (Estados Unidos) destinados à venda para plantações de algodão localizadas mais ao sudoeste. Pelo contrário: é notória a alta taxa de abortos provocados deliberadamente pelas mulheres escravas, ou então como consequência das duras condições de trabalho. Além disso, para o proprietário, uma mulher grávida é mão-de-obra forçada a trabalhar menos. Assim, para não perder os dias de trabalho, os amos preferem que as mulheres abortem.

No geral, tendeu-se - e não somente nas colônias espanholas - a importar muito mais homens negros que mulheres. [...] O homem é preferido por razões produtivas. No que se refere às crianças que nascem, a enorme mortalidade existente nas plantações faz com que somente 10% delas chegue à idade adulta.

Um fator degradante da vida do escravo está nas suas mínimas possibilidades de viver em família e ter filhos. Além disso, a enorme desproporção entre os dois sexos influi sobre a vida sexual normal e impele à masturbação e à sodomia. [...]

Família escrava no Suriname, ca. 1770. 
John Gabriel Stedman

[...]

Nos casos em que os escravos conseguem formar famílias, ficam sujeitos à absoluta arbitrariedade do amo, que pode romper o núcleo familiar de acordo com a sua conveniência, vendendo sua mulher e filhos. "Vende-se uma escrava com criança..." é um anúncio que se lê frequentemente nos jornais.

[...]

Quando há a libertação, os negros estão incapacitados para entender as novas relações econômico-sociais que existem. Muitos preferem não o trabalho assalariado, mas a marginalização, e um viver miserável que equivale a uma morte lenta. Estruturados para viver na escravidão, sua readaptação imediata às novas condições torna-se impossível. [...]

A economia de plantação uniformiza o aspecto exterior dos negros: todos vestem-se igualmente. O artesanato e os enfeites de origem africana se perdem. Os albergues são verdadeiros cárceres. Em Cuba, são edifícios de pedra, retangulares, com uma só porta de entrada que dá acesso a um pátio central.

[...]

As prolongadas jornadas de trabalho e o seu ritmo contrariam os ritmos vitais herdados das condições de trabalho na África, ou simplesmente excedem qualquer aptidão humana. O tempo livre torna-se insignificante e com  ele, as possibilidades de relacionamento social se reduzem. O escravo, um ser humano, é transformado em animal. Seu desgaste como produtor se dá em poucos anos [...].

Geralmente os amos possuem negros de diferentes origem tribal e cultural. Quanto menos se entenderem entre si, menores são as possibilidades de entrar em acordo para ações comuns de reivindicações. [...]

[...]

Quando a escravidão e a servidão são abolidas legalmente, sem que isso signifique ao mesmo tempo mudanças fundamentais na estrutura da sociedade, os valores antigos persistem, assim como os hábitos e usos, os preconceitos raciais e o simbolismo inerentes à sociedade legalmente superada, mas não nas relações reais, atuantes e eficazes. O que usualmente se chama de "mentalidade" se prolonga, se petrifica em favor da permanência daquilo que, dia a dia, hora a hora, segrega essa "mentalidade". [...]

POMER, León. História da América Hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 116-121.

2 comentários: