"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 6 de novembro de 2011

O dia-a-dia nas ruas do Rio de Janeiro e São Paulo no início do século XX

Vendedores de aves

- Olha o prú da roda vôôôa!
- Olha o avacaxi ôôô...
- Vae Bassôôôura, espanadoire!
- Pixe, camaró... Ulha a sardenha!
- Fófo, barato, fófo, fófo!
- Empedinhas spiciaes cum quêmerão e azaitonas! Stam queimando! Não tendo quêmerão nan pagan nada!
- Moça, tenho muita coisa pra bocê, tudo baratinha!

Portugueses, italianos, turcos... Cada um com o seu pregão, os vendedores ambulantes enchiam as ruas das cidades brasileiras nas primeiras décadas do nosso século. Principalmente as ruas do Rio de Janeiro e São Paulo, já então as duas maiores cidades do Brasil. Elas pareciam ter-se transformado numa grande feira internacional.

Neste mercado formado pelos ambulantes, não faltavam, é claro, vendedores bem brasileiros:

- Canjiquinha... Iaiá, bem quentinha!
Eu é de namorá
Eu sou rapaz sortero
Eu quero me casá...
Sor-ve-te!!!
É de quatro colidade

"Seu" Ariosto, filho de italianos, não se esquece desse tempo, quando ele, ainda menino, morava em São Paulo:

- A Avenida Paulista era bonita, calçamento de paralelepípedos, palacetes. As outras ruas eram semicalçadas, cobertas de árvores, de mata. De noite, os lampioneiros vinham acender os lampiões e de madrugada voltavam para apagar [...]. A nossa casa tinha quintal com pé de laranja, mixirica, ameixa e abacate. Minha mãe gostava muito de flores e plantava rosas, margaridas, violetas.

Ruas assim eram gostosas e seguras. Os meninos jogavam futebol, brincavam de pique, pião, bola de gude, soltavam balões, papagaios... As meninas brincavam de boneca, amarelinha, chicotinho queimado, de roda...

Se essa rua, se essa rua
Fosse minha
Eu mandava, eu mandava
Ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas
De brilhante
Para o meu, para o meu
Amor passar

Meninos e meninas brincavam ainda de bento-que-é-bento-é-o-frade, bandeira, passa-anel... Os moradores punham as cadeiras na calçada, de tardinha, para conversar. E os seresteiros ainda cantavam suas grandes paixões na janela da amada:

Acorda, desperta do leito
Deixa de tanto dormir
Vem ouvir um desgraçado
Que hoje quer morrer por ti [...]

Palhaços anunciavam "o maior espetáculo da terra":

Ô raia o sol
Suspende a lua
Olha o palhaço
No meio da rua

Hoje tem espetáculo?
Tem sim senhor
Às oito da noite?
É sim senhor

Hoje tem marmelada?
Tem sim senhor
É de noite, é de dia?
É sim senhor

Aproveita macacada
Dez tostões não é nada
Sentadinho na bancada
Pra ver a namorada

Os tocadores de realejo, quase sempre italianos, tocavam uma música triste. Um periquitinho tirava a sorte das pessoas e uma criança - ou um macaquinho careteiro - recolhia no chapéu as moedas para o tocador.

Um outro italiano, que perambulava pelas ruas do Rio de Janeiro, fazia sons mais alegres: era o "homem dos sete instrumentos". Com uma vara amarrada no braço ele batia num bumbo preso às costas, sacudia guizos pendurados na cabeça e soprava, ora uma gaita, ora uma clarineta, ora um pífano, que é uma flauta de madeira com sons agudos. Seus chutes no ar acionavam os pratos e ferrinhos armados sobre o bumbo e ligados ao tornozelo:

- Eco! Uma bela e dolce musicata pra voces: moderato, allegro e maestoso!!! 

ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo: uma nova história da nossa gente. 2 - A República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 50-52.

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