"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 20 de novembro de 2011

I Guerra Mundial: a guerra como celebração

Os sobreviventes (1922), Käthe Kollwitz. Com a estimativa de 10 milhões de mortos e 31 milhões de feridos, a I Guerra Mundial destruiu a esperança de que a Europa ocidental vinha progredindo continuamente rumo a uma civilização racional e esclarecida.

Quando a guerra era certa, ocorreu um fenômeno extraordinário. Multidões reuniram-se nas capitais e manifestaram sua lealdade à pátria e sua disposição para lutar. Parecia que o povo desejava a violência pela violência. Era como se a guerra proporcionasse uma fuga da rotina monótona da sala de aula, do emprego e do lar, do vazio, da insipidez e da mediocridade da sociedade burguesa - "um mundo envelhecido, frio e exausto", disse Rupert Brooke, um jovem poeta inglês. Para alguns, a guerra era um "momento belo [...] e sagrado, que satisfazia um anseio ético". Porém, de modo mais significativo, a efusão de sentimentos patrióticos demonstrou o imenso poder que o nacionalismo exercia sobre a mentalidade europeia. Com um êxito extraordinário, o nacionalismo uniu milhões de pessoas numa coletividade pronta a dedicar-se de corpo e alma à nação, especialmente em sua hora de necessidade.

Em Paris, os homens marcharam pelos bulevares entoando as palavras vibrantes do hino nacional francês, a Marselhesa, enquanto as mulheres faziam chover flores sobre os jovens soldados. Um participante daqueles dias recorda: "Jovens e velhos, civis e militares inflamados com o mesmo entusiasmo [...] milhares de homens, ansiosos por lutar, acotovelavam-se nos pátios dos centros de recrutamento, aguardando para se alistarem [...] A palavra 'dever' tinha um significado para eles, e a palavra 'país' tinha recuperado seu esplendor." Cenas semelhantes ocorreram em Berlim. "É uma alegria estar vivo", lia-se no editorial de um jornal. "Ansiamos tanto por este momento [...] A espada que foi colocada em nossa mão não será embainhada até que nossos objetivos sejam consumados e o nosso território ampliado tanto quanto a necessidade exige". Escrevendo sobre aqueles dias tão importantes, o filósofo e matemático Bertrand Russel relembrou seu horror e "assombro com o fato de que homens e mulheres comuns se deliciassem com a perspectiva da guerra [...] A antecipação da carnificina era um deleite para cerca de 90% da população. Tive de rever minhas opiniões sobre a natureza humana".

Cartaz de 1914 alusivo à Tríplice Entente, mostrando alegorias da França (Marianne), Rússia e Reino Unido.

Os soldados destinados à batalha agiam como se estivessem partindo para uma grande aventura. "Meus queridos, orgulhem-se de viverem em tal época e em tal nação e de [...] terem o privilégio de enviar aqueles que amam para uma batalha tão gloriosa", escreveu a seus familiares um jovem alemão estudante de direito. Os jovens guerreiros desejavam fazer algo nobre e altruísta, conquistar a glória e experimentar a vida em sua máxima intensidade.

Muitos dos mais ilustres intelectuais europeus também foram cativados pela atmosfera marcial. Eles compartilhavam os sentimentos de Rupert Brooke: "Agradeçamos agora a Deus/Que nos colocou em harmonia com Sua hora,/E cativou nossa juventude, e nos despertou do sono." Para o ilustre historiador alemão Friedrich Meinecke, agosto de 1914 foi "um dos grandes momentos da minha vida, que subitamente encheu minha alma com a mais profunda confiança em nosso povo e a mais intensa alegria". Em novembro de 1914, Thomas Mann, o proeminente escritor alemão, via a guerra como "purificação, liberação [...] uma enorme esperança; inflama o coração dos poetas [...] Como poderia o artista, o soldado que há no artista", perguntou ele, "não louvar a Deus pelo colapso de um mundo pacífico com o qual ele estava aborrecido, tão excessivamente aborrecido?" Além de sua sede por exaltação e sua busca do heróico, alguns intelectuais saudaram a guerra porque ela unificava a nação num espírito de fraternidade e auto-sacrifício. Era um retorno, sentiam alguns, às raízes orgânicas da existência humana, um meio de superar um sentimento de isolamento individual.

Assim, uma geração de jovens europeus marchou alegremente para a guerra, incentivados por seus professores e encorajados por suas declinantes nações. Deve-se enfatizar, porém, que os soldados que foram para a guerra cantando e os estadistas e generais que saudaram a guerra, ou não se empenharam em evitá-la, contavam com um conflito curto, decisivo e galante. Poucos intuíam o que a I Guerra Mundial viria a ser: quatro anos de matança bárbara e sem sentido. Os gritos dos chauvinistas, dos tolos e de idealistas iludidos sufocaram as palavras daqueles que perceberam que a Europa estava tropeçando na escuridão. "As luzes estão se apagando em toda a Europa", disse o secretário do Exterior britânico Edward Grey. "Nunca em nossas vidas voltaremos a vê-las acesas."

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma História concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 521-522.

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