"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 8 de outubro de 2011

O mundo em 1455

Os embaixadores, Hans Holbein


Um visitante estrangeiro empreendendo uma auditoria da raça humana no ano em que Gutenberg publicou sua Grande Bíblia teria concluído que a espécie estava se virando muito bem. A maior parte das perdas populacionais sofridas por toda a Europa com guerras e peste havia sido superada. [...] A China [...] ainda não se recuperara plenamente do baque duplo da Peste Negra e da conquista mongol, mas isso era equilibrado pelo crescimento atingido em duas regiões - a África subsaariana e as Américas - que a peste não atingira.

[...]

Nas florestas tropicais centrais, uma infinidade de sociedades de caçadores-coletores seguia em seus modos de vida tradicionais. Nas terras altas a leste, tribos de nômades pastoralistas ainda viajavam com seus rebanhos de pastagem em pastagem. Na região em torno do rio Limpopo [...] a riqueza gerada por tais manadas sustentou um Estado cuja capital, a Grande Zimbábue, abrigou uma população permanente da ordem de 20 mil pessoas. Por seus portos na costa leste, ela exportou ouro e marfim através do oceano Índico e importou contas de vidro e artigos têxteis de algodão da Índia e porcelana chinesa. [...]

Na África setentrional e ocidental, a atividade comercial mais importante era o tráfico de escravos. Era também uma das mais antigas, remontando aos tempos romanos. Em algumas partes do norte da África, quase metade da população era de escravos, e além do mais havia um substancial comércio exportador para países muçulmanos em torno do Mediterrâneo, para a Arábia e para o sudoeste da Ásia. Alguns deles eram cativos capturados na guerra, mas muitos eram fruto de incursões planejadas com o propósito específico de captura. Em meados do século XV, aldeias na parte ocidental do continente continuavam a ser assoladas por invasores que surgiam de repente para levar os jovens saudáveis. Em cem anos, esses comerciantes de escravos encontrariam um imenso mercado nas Américas. [...]

Nas Américas, isoladas dos micróbios eurasianos e sustentadas por culturas agropecuárias altamente eficientes, a população viera aumentando por séculos [...].

A civilização que ocupou o Vale Central do México foi criação de um povo conhecido como astecas, que se estabeleciam na região vindos do norte por volta de 1200. [...] Em 1325, haviam instituído uma cidade-Estado própria, chamada Tenochtitlán [...]. Por volta de 1455, haviam conquistado todo o Vale Central. [...]

Embora Tenochtitlán tenha sido fundada numa região ainda virgem, os arquitetos que a criaram não começaram do zero. Eram herdeiros de uma tradição que datava de mais de mil anos, até a construção da metrópole de Teotihuacán, cujas ruínas não ficavam longe dali. A riqueza que possibilitou o trabalho deles e sustentou o luxuoso estilo de vida dos governantes que os empregaram veio do tributo colhido de povos sujeitados nas regiões adjacentes. [...]

A 5 mil quilômetros dali, nos Andes, na América do Sul, o império inca mal começava a surgir. No século XII, o império tihuanaco [...] finalmente entrara em colapso. Em consequência, uma série de pequenos reinos surgira, a maioria deles restrita a vales solitários. Então, entre os séculos XIII e XV, um império sucessor - o Chimu - [...] surgira. Por volta de 1200 os incas haviam estabelecido uma cidade em Cuzco [...].

Os incas foram herdeiros de uma tradição agrícola com mais de 4 mil anos que desenvolveu um dos sistemas de cultivo mais sofisticados do mundo, incluindo obras de irrigação maciça e sustentado por uma rede magnífica de estradas. [...]

O povo do litoral do Pacífico na América do Sul e o povo do México sabiam da existência um do outro, e trocas culturais limitadas haviam ocorrido durante muitos séculos, por meio de intermediários, ao longo da costa dos dois continentes. [...]

Na América do Norte nessa época, cerca de 50 por cento da área hoje ocupada pelos Estados Unidos abrigava culturas agrícolas que sustentavam uma infinidade de aldeias e vilas prósperas. [...]

O milho era também o principal cultivo ao longo de grande parte do litoral leste. [...]

Longe das terras de agricultores, nativos de muitos tribos buscavam um estilo de vida tradicional caçador-coletor. Quando os humanos chegaram nas Américas, milhares de anos antes, eles se aproveitaram dos grandes mamíferos, cujas populações jamais se recuperaram. Em meados do século XV, as manadas de bisão não mais trovejavam através da pradaria. [...]

Do outro lado do Pacífico, o povo do Japão ainda vivia de modo muito parecido com o de seus ancestrais de três séculos antes. [...] O imperador continuava sendo um membro da família Yamoto, mas agora ele meramente reinava [...]. Desde 1192, o poder efetivo passara às mãos de uma sucessão de xoguns, soberanos militares que controlavam a vida de todo mundo fora do círculo imediato da corte imperial. Nesse regime, o povo era governado por, e existia para servir, uma aristocracia militar, chamados samurais, a casta mais elevada em uma sociedade rigidamente estratificada [...]. Mas por volta de 1455, a prosperidade crescente encorajara uma série de revoltas por parte de um campesinato rebelde [...] levou ao enfraquecimento do poder do xogunato e da aristocracia samurai em geral.

Na China, a derrubada da dinastia mongol em 1368 e sua substituição pela dinastia Ming [...] levara a uma reversão da duradoura tendência de população e prosperidade do norte ao sul. A criação de uma nova capital, Pequim [...] e o término da construção do Grande Canal para supri-la, constituíra a força motriz para um renascimento [...]. 

"Ming" significa "brilho", e artisticamente esse foi um dos períodos mais brilhantes da história chinesa. Em meados do século XV, os artesãos e artífices chineses estavam produzindo grandes quantidades de tapetes finos e esculturas, além de bordados belíssimos. Particularmente notável era a linda porcelana azul e branca [...].

[...] Uma tecnologia de ponta fornecera a base de sustentação para a realização artística e para o estilo de vida luxuoso das classes altas. Mas algum revés acontecera ao espírito inovador do país. [...] Na atmosfera reprimida, introspectiva e retrógrada da dinastia Ming, a pesquisa científica foi desencorajada, e o empreendimento comercial passou a ser rigidamente controlado. [...] A meio mundo dali, na Europa, outros povos mudavam rapidamente [...].

[...] Do Timor e das Índias Orientais e Zanzibar, na costa leste da África, mercadores iam e vinham. Os centros desse comércio no oceano Índico eram as cidades mercantis do sul da Índia, onde árabes, judeus e cristãos se juntavam para fazer negócios. De seus portos, navios com destino ao Mediterrâneo partiam com carregamentos de pimenta, sândalo [...] e especiarias, e voltavam carregados de cobre e ouro. [...]

[...]

No cadinho das guerras europeias, um novo tipo de entidade começava a ser forjada: o Estado-nação. O ano de 1453 trouxera ao fim o longo período de conflito entre Inglaterra e França que ficou conhecido com o nome de Guerra dos Cem Anos. [...] A Espanha também caminhava para essa condição. Os reinos de Aragão e Castela haviam reconquistado importantes territórios junto aos mouros - os soberanos islâmicos que governaram grande parte da península ibérica durante os seiscentos anos precedentes. [...]

O papado perdera a batalha pelo poder terreno contra os suseranos do continente, mas sua autoridade espiritual ainda exercia enorme influência na política europeia. E em grande parte do continente a Igreja possuía poder absoluto de vida ou morte sobre os que ousavam desafiá-la em questões de fé, consciência e instrução. Porém, havia um espírito de inquietude intelectual e religiosa pairando no ar que constituía uma ameaça a essa autoridade. A revolução impressa, inaugurada pela publicação da Grande Bíblia de Gutenberg em 1455, forneceu uma voz a esse espírito, e no devido tempo isso se traduzia em um golpe nessa autoridade da qual ela jamais se recuperaria.

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 183-191.

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