"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Colombo: um santo ou um demônio?

Colombo: um santo ou um demônio?

"O mundo não é tão grande como diz o povo".
(Cristóvão Colombo, em carta de 1503 aos Reis  Católicos)

O futuro Almirante da Espanha teve seu batizado no mar a serviço de um corsário francês, chamado René de Anjou, que combatia, entre outros, o próprio rei Fernando de Aragão. Este foi o mesmo que, a partir da união com Isabel, rainha da vizinha Castela, participou do processo de unificação da Espanha, o que não significou unidade nacional porque ambos os reinos continuaram sendo autônomos, unidos apenas na figura dos soberanos.


Um naufrágio levou Colombo para as costas de Portugal. Através da Escola de Sagres, aprendeu as últimas técnicas de cartografia, astronomia, a arte da navegação e da construção de navios. Utilizando a ciência em voga naquela época, misturada com profecias, citações bíblicas e frases de Aristóteles e dos santos da Igreja, montou a tese de que era possível alcançar a Índia viajando para o Oriente.


Como não foi levado a sério pelos cientistas de Portugal, que o acusavam de ser "mentalmente insano", nem pela Coroa lusitana interessada em atingir as Índias passando pelo lado sul da África, preferiu viajar para a Espanha onde teria a oportunidade única de conciliar o pensamento metafísico com o científico. Sem essa combinação da fé com a ciência não teríamos o descobrimento.


Durante os seis anos em que Colombo permaneceu na Espanha, passou a maior parte de seu tempo discutindo com os teólogos espanhóis, analisando os devaneios dos chamados padres da Igreja para tentar convencê-los, sem êxito, de que não existia nada nas Santas Escrituras contra sua tentativa de encontrar um novo caminho para o Oriente.


Fernando, ainda que sem saber que havia sido combatido por Colombo, não aceitava o envolvimento do Reino de Aragão nessa aventura, enquanto Isabel apostava nas ideias do genovês como forma de superar Portugal, contra a opinião dos teólogos da Corte. O resultado será que a América pertencerá a Castela, aos castelhanos, e não a Aragão.


Homem de transição da época medieval para o Renascimento europeu, Colombo dominava as melhores técnicas de navegação da época. Seu pensamento lógico-científico ficaria demonstrado na análise feita durante a travessia do Triângulo das Bermudas, na chegada ao mar do Caribe na América Central, quando deduziu que as oscilações bruscas da bússola, que teoricamente deveria estar apontando para o norte, devia-se ao fato de existirem na Terra diversos campos magnéticos, que atraíam sua agulha magnética.


Esse mesmo cientista tentava convencer os reis da Espanha a utilizar as riquezas de seu descobrimento para financiar a última cruzada, com a finalidade de resgatar a Terra Santa das mãos dos árabes. Colombo estava imbuído de um cristianismo medieval, numa época em que era impossível não acreditar em Deus ou duvidar da infalibilidade papal, independentemente de esse ser um santo ou um devasso.


Colombo, fanaticamente religioso, procurara desesperadamente o "paraíso terrenal" de Adão e Eva em terras americanas. Em seu diário de bordo, escreveu que finalmente o tinha achado na desembocadura do rio Orinoco, na Venezuela, mas negou-se a penetrar nessa espécie de céu sem uma permissão especial do próprio papa, que, para surpresa geral, concedeu-o posteriormente.


Como definir essas diversas facetas de Colombo? nosso almirante oscilava permanentemente entre três direções: efetuava uma interpretação puramente pragmática e eficaz do mundo exterior quando se tratava de assuntos de navegação; ao procurar explicar a natureza desconhecida e recém-descoberta do Novo Mundo utilizava-se de uma interpretação religiosa, colocada como finalidade última de todas as coisas - na Bíblia deveriam estar contidas todas as explicações daquilo que não conseguia entender; registrava detalhadamente, em seu diário, pássaros, plantas, as cores da América, num relato ecológico do estado da natureza na chagada dos espanhóis, natureza essa que desapareceria lentamente à medida que a colonização avançava.


Essa terceira faceta de Colombo, sua submissão absoluta à beleza da natureza, livre de interpretação, de toda utilidade ou função, é típica de uma mentalidade moderna. Mas seu comportamento diante dos índios era bem diferente.


Em seus argumentos privilegiava sua autoridade e não sua experiência. Ele pretendia saber de antemão o que viria a encontrar. A experiência concreta está colocada para ilustrar uma ideia que já possuía através das Santas Escrituras, ou da Ciência, que não a contradissesse, e não para ser investigada, questionada. Não se tratava, pois, de encontrar a verdade e sim de procurar confirmações para uma verdade que ele achava conhecer de antemão.


Colombo não se importava com os abusos sexuais ou a violência de seus homens com os índios, mas se preocupava muito quando se tratava de seu patrimônio. Durante sua administração não duvidara em mandar enforcar aqueles que se negavam a pagar sua parte no botim da conquista, fixado e concedido pelo contrato com os reis católicos em 10% das rendas conseguidas na exploração das Índias.


O acordo comercial também estabelecia outros 12% sobre os lucros das expedições que ele patrocinasse, concedendo-lhe o título de vice-rei e governador perpétuo das Índias. O desmando e as arbitrariedades de sua administração lhe valerão a prisão e o retorno para a Espanha, auto-acorrentado como protesto pessoal pelo descumprimento do contrato com os reis da Espanha.


Com a morte de Isabel, perdera sua proteção, seu prestígio, seus títulos e suas riquezas. Morreu solitário e pobre num mosteiro, obrigando seu filho a jurar que utilizaria as riquezas, que supunha seriam devolvidas pela Coroa da Espanha, para financiar a última cruzada contra os árabes. Triste fim para o Almirante.


PEREGALI, Enrique. A América que os europeus encontraram. São Paulo: Atual, 2011. p. 75-77.

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