"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A vida no Brasil colônia

Uma família brasileira,  Henry Chamberlain
     
* A família patriarcal. A vida em sociedade, no Brasil colônia, desenvolveu-se em torno de um núcleo poderoso: a família, que girava à volta do chefe, do pai. É a chamada família patriarcal, em geral de formação portuguesa antiga. O grupo familial era formado não só pelo casal e seus filhos, como ainda por muitos parentes, afilhados, agregados e escravos. O pai tinha autoridade absoluta sobre todos, sua palavra era lei. Escolhia as profissões e os casamentos para os filhos segundo as conveniências. Os casamentos, nas famílias mais ricas, ou eram combinados entre parentes (primos, tios) para proteger os bens e as heranças da mão de estranhos, ou eram acertados entre famílias poderosas para conservar e aumentar seu prestígio.

A família patriarcal pôde ganhar importância e força graças às grandes propriedades agrícolas que reuniam muitas pessoas em suas terras, como nos engenhos do Nordeste, nas fazendas paulistas e nas estâncias gaúchas.

* Os engenhos do Nordeste. Nos engenhos do Nordeste o centro era a casa-grande, pertencente a gente de posses, ao redor da qual se agrupavam as moradias dos escravos negros, as senzalas. As casas-grandes tinham paredes espessas de taipa ou de pedra e cal, telhados sem forro (telha-vã), com beirais bem largos e alpendres na frente e, às vezes, também dos lados. Assim podiam oferecer aos moradores melhor proteção contra o calor excessivo dos trópicos, o sol forte e as chuvas pesadas. O interior dessas casas era simples, com poucos móveis. As mesas, as cadeiras, os aparadores e as arcas para guardar pertences, quando não vinham da Europa, eram feitas das melhores madeiras da terra, principalmente de jacarandá. As camas a princípio foram raras, pois a maioria das pessoas dormia em redes, quando muito em catres, estrado de tábuas, sobre o qual se estendia um magro acolchoado. Nas paredes dos cômodos costumava ter-se imagens religiosas e, nos quartos, bonitos oratórios com estatuetas e pinturas de santos.

A grande propriedade canavieira do Nordeste, como todas as demais grandes propriedades do Brasil colônia, bastava-se praticamente a si mesma. Tinha lavouras, gado, cavalos para montar, madeira para construções, olarias para fabricar telhas e formas para açúcar, teares, carros de boi para transporte e escravos índios ou negros para executar todo tipo de trabalho.

Os senhores de engenho só iam à vila ou à cidade para assistir às festas religiosas, negociar seu açúcar, fazer compras de artigos importados da Europa e tomar parte ativa na política local. De resto, sua vida era extremamente descansada.

O vestuário do rico senhor de engenho e da sua família era simples no campo e dentro de casa, mas quando saía para a vila ou cidade gostava de ostentar sua riqueza, trajando roupas europeias luxuosas, de seda, veludo, damasco, brocado.

As mulheres saíam pouquíssimo de casa; viviam fechadas entre quatro paredes; passavam o tempo sentadas no chão, sobre esteiras ou tapetes, à moda oriental, às voltas com costuras e beliscando doces. Quando saíam, elegantemente vestidas e enfeitadas de jóias, para ir à igreja e às festas ou para fazer visitas, eram transportadas por escravos em redes ou cadeirinhas.


Senhora brasileira em sua cadeira, Henry Chamberlain

* As fazendas paulistas. Já nas fazendas paulistas a vida era bem mais simples. Embora o fazendeiro tivesse geralmente duas casas, uma na fazenda e outra na vila, estas nunca puderam comparar-se às casas senhoriais do Nordeste. A casa da cidade só era utilizada como pouso, para descanso de alguns dias, quando o fazendeiro ia à vila fazer negócios ou participar da política e de festas civis e religiosas. Ou então, para moradia de seus filhos quando tinham que estudar. Nesse caso eram acompanhados por empregadas da casa, frequentemente índias ou mestiças. Viver na fazenda é que era sinal de importância. Daí ser a casa da fazenda melhor construída e melhor mobiliada do que a casa da cidade. Eram comumente feitas de taipa, cobertas, na fase inicial da colonização, de palha ou de sapé, mais tarde de telhas, com um alpendre pequeno na frente e atrás. O mobiliário era reduzido ao indispensável. Nos primeiros tempos usou-se dormir em redes, às vezes no próprio chão; depois é que surgiu o catre.

Assim como as casas, o vestuário do paulista não tinha o menor luxo. As roupas eram poucas, feitas de pano de algodão tingido. No inverno, usava-se um casaco de lã (chamado surtum) ou um poncho de lã. Só mais tarde, com a riqueza que a exploração do ouro proporcionou, foram usados no vestuário tecidos finos, importados, de lã, cetim e damasco.

O fazendeiro paulista, instalado nos campos do planalto, foi um homem muito ativo. Desde o início da colonização partiu para o interior em busca de riqueza que não encontrava em fartura em suas terras. Por isso foi bandeirante e desbravou sertões. A mulher paulista também não ficou atrás em atividade, pois era ela quem dirigia a fazenda quando o marido partia nas bandeiras.


Família no interior do Brasil em viagem, Aimé-Adrien-Taunay

* As estâncias gaúchas. Nas estâncias gaúchas a vida foi ainda mais simples e mais rude. Os colonos açorianos que as formaram eram agricultores sem dinheiro, que tiveram que dispender muito esforço e muito trabalho para se transformar em criadores de gado.

As casas dos estancieiros eram baixas por causa do vento que trazia também o frio, construídas de taipa e cobertas de palha; os cômodos eram pouquíssimos, geralmente dois, a sala e o quarto do dono, muitas vezes separados entre si apenas por uma cortina. As peças toscas de mobiliário e certos utensílios domésticos eram geralmente de couro. A cozinha funcionava numa pequena choupana à parte, onde, ao pé do fogão, todos se reuniam em círculo para conversar e tomar o mate chimarrão.

Homem de hábitos simples, que passava o dia a cavalo, o estancieiro gaúcho era também muito simples no vestir: os homens trajavam calças largas de lã, as bombachas, as mulheres, vestidos de chita de algodão. Para proteger-se do vento pampeiro, todos usavamo poncho de lã, espécie de capa larga que descia até os pés.

Essa simplicidade que encontramos entre os gaúchos, e que já encontramos entre os paulistas, é característica de uma vida muito ativa de esforço e de trabalho contínuo. Só quando o Sul começou a abastecer as minas de ouro foi que o homem do campo gaúcho e o fazendeiro paulista conheceram maior largueza.

* A vida urbana. No Brasil, durante os dois primeiros séculos de colonização, a vida no campo, isto é, a vida rural, dominou completamente. A partir do século XVIII a vida na cidade, a vida urbana, cresceu em importância. O ponto de partida para essa transformação foi a descoberta das minas de ouro; as cidades antigas ganharam novo impulso em virtude do comércio, e muitos núcleos de povoamento se foram formando.

Nas regiões mineradoras os numerosos acampamentos transformaram-se dentro de pouco tempo em centros urbanos. Nessa região a vida se diferenciou da vida nas outras áreas brasileiras. Cada minerador possuía um pequeno lote de terra, que ele revolvia inteiro em busca do metal precioso; por isso ele quase não plantava nada nessa terra. Concentrou-se então na vila, onde morava e onde negociava o ouro e comprava o que lhe era necessário para seu sustento e para o trabalho. Tudo vinha de fora, das regiões produtoras e dos centros importadores de produtos europeus.

Nas cidades de Minas Gerais floresceu uma vida luxuosa, até então desconhecida no Brasil. Surgiram os sobrados ricamente ornamentados com portas de pedra trabalhada, com artísticos gradis de ferro, com enfeites de porcelana em forma de animais e de frutas, e mobiliados com peças finíssimas em madeira entalhada.

A vida era intensa, não só pela movimentação do comércio, como pela quantidade de festas civis e religiosas e por espetáculos musicais e de teatro.

A população das cidades mineiras, tal como nas outras regiões do Brasil, vestia-se modestamente dentro de casa, mas quando saía à rua fazia questão de trajar-se ricamente, de acordo com a última moda europeia.

Ao lado dos grandes proprietários de terras e dos ricos exploradores de ouro desenvolveu-se o grupo dos comerciantes que, das cidades e dos portos de Belém, São Luís, Salvador e Rio de Janeiro, comandavam a compra e venda das principais mercadorias do Brasil.

Como o Rio de Janeiro se tornara principal centro de abastecimento das minas, principal porto de exportação do ouro, os comerciantes foram se fixando mais e mais nessa cidade, nela concentrando seus lucros.

A riqueza que procedia das minas e que desembocou no Rio de Janeiro foi dando um progresso material cada vez maior à cidade. Quando o Rio de Janeiro passou a capital esse progresso se acentuou. Apareceram numerosos sobrados de construção sólida, feitos de tijolos e granito; o andar térreo servia frequentemente para fins comerciais, para lojas ou armazéns, onde caixeiros e escravos trabalhavam sem cessar sob as vistas do comerciante. Este já podia dar-se o prazer de passar horas observando o movimento da rua ou conversando.

Tal como os senhores de engenho, a gente rica da cidade vivia uma vida inteiramente folgada, fazia questão de mostrar que não trabalhava, de ostentar, fora de casa, um grande luxo nas vestes e nas jóias e enfeites. Na intimidade, porém, o ambiente era outro: os trajes sumários, a mobília modesta, as refeições simples.

Nenhuma pessoa rica saía a pé: os homens serviam-se das sejes ou dos coches, puxados a mula, e as mulheres das cadeirinhas, nas quais deixavam-se transportar pelos escravos até para dentro das igrejas.

Nessa época a cidade oferecia poucas distrações: as famílias ricas iam a espetáculos embora fossem de má qualidade, frequentavam bailes familiares e os homens reuniões de jogo.

Praticamente não existia a vida noturna por causa da falta de iluminação. Nas procissões e nas festas religiosas toda a população da cidade tomava parte.. Quando foi inaugurado o Passeio Público algumas famílias logo o transformaram em ponto de encontro entre parentes e conhecidos que lá se reuniam à tardinha para comentar os fatos do dia e as últimas notícias.

* A vida no Rio de Janeiro no período joanino. Esse tipo de vida calma e aparentemente sem preocupações foi de um dia para outro revolucionado pela chegada da Família Real portuguesa e toda a sua corte. Para atender às exigências foram logo construídas novas casas e reformadas as existentes. Os balcões fechados com madeira trançada, as rótulas, começaram a ser substituídas por janelas com vidraças. Começaram a aparecer também residências isoladas, longe do centro, em meio a jardins, com muitas árvores e gramados.

Seguiu-se toda uma série de modificações introduzidas pelos comerciantes, vindos sobretudo da Inglaterra e da França, após a abertura dos portos. No centro da cidade, na rua do Ouvidor, instalaram-se inúmeras lojas cheias de artigos europeus e orientais, dos mais finos. Surgiram livrarias, perfumarias, tabacarias, lojas de calçados, oficinas de costureiras e de modistas, salões de barbeiros e de cabeleireiro. Tudo isso foi modificando, aos poucos, gostos, hábitos e costumes da população, introduzindo na cidade noções de conforto desconhecidas até então.

Para assegurar o progresso material foi necessário um número maior de pedreiros, carpinteiros, ferreiros, de pessoas, em suma, especializadas em vários ofícios; daí foi surgindo aos poucos uma nova camada social, pequena classe média, intermediária entre os escravos, os ricos e nobres.

As famílias de posses começaram a dar maior importância ao interior das casas, às peças de mobiliário, à decoração dos cômodos e, o que é importante, também aos trajes cotidianos e caseiros. Guarda-roupas e cômodas ocuparam os lugares tomados antes por arcas e baús. Consolos, pianos, poltronas, sofás, lustres, grandes espelhos foram importados de Londres e de Paris; na mesa tornou-se usual a louça inglesa e nas residências mais ricas adotaram-se banheiras em substituição às tinas para banho.

A presença da Corte portuguesa no Rio de Janeiro ofereceu à população oportunidades várias de divertir-se: festas, comemorações cívicas, procissões, desfiles, espetáculos teatrais mais frequentes, concertos. A mulher pôde sair de seu isolamento, de seu mundo restrito a tarefas domésticas; nas residências particulares havia saraus, com recitais de piano e canto, danças e jogos; os parentes e vizinhos começaram a visitar-se com maior frequência.

A cadeirinha foi proibida de ser usada no centro da cidade, para facilitar a passagem de veículos. Nas ruas, além dos coches e das seges, começaram a circular carruagens puxadas por cavalos. A cidade foi-se tornando, assim, mais colorida, mais alegre e mais comunicativa.

Com o aprimoramento do gosto, dos hábitos e dos costumes houve também um aprimoramento cultural, através de novas escolas elementares, médias e superiores abertas não só no Rio como também em outras capitais de província. A imprensa difundiu-se e os livros começaram a circular fazendo crescer o interesse pela cultura e pelos estudos.

Daí por diante, os filhos de senhores de engenho, dos fazendeiros paulistas e dos estancieiros vieram educar-se nos centros urbanos e, aos poucos, as capitais das províncias se modificaram sob a influência das transformações do Rio de Janeiro. Mas o Rio, como capital do império, será o pólo de atração dos grandes proprietários de terras que, após a Independência, ocuparão os cargos políticos de maior projeção.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História do Brasil: das origens à independência. São Paulo: Nacional, 1980.

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